29.7.03

DANIEL FARIA

Nasceu em 1971, em Baltar.
Fez os cursos de Teologia e Estudos Portugueses, no Porto.
Morreu em 1999, quando estava prestes a concluir o noviciado no Mosteiro Beneditino de Singeverga.


Sei que o homem lavava os cabelos como se fossem longos
Porque tinha uma mulher no pensamento
Sei que os lavava como se os contasse

Sei que os enxugava com a luz da mulher
Com os seus olhos muito claros voltados para o centro
Do amor, na operação poderosa
Do amor

Sei que cortava os cabelos para procurá-la
Sei que a mulher ia perdendo os vestidos cortados

Era um homem imaginado no coração da mulher que lavava
O cabelo no seu sangue

Na água corrente

Era um homem inclinado como o pescador nas margens para ouvir
E a mulher cantava para o homem respirar

*

Homens que trabalham sob a lâmpada
Da morte
Que escavam nessa luz para ver quem ilumina
A fonte dos seus dias

Homens muito dobrados pelo pensamento
Que vêm devagar como quem corre
As persianas
Para ver no escuro a primeira nascente

Homens que escavam dia após dia o pensamento
Que trabalham na sombra da copa cerebral
Que podam a pedra da loucura quando esmagam as pupilas
Homens todos brancos que abrem a cabeça
À procura dessa pedra definida

Homens de cabeça aberta exposta ao pensamento
Livre. Que vêm devagar abrir
Um lugar onde amanheça.
Homens que se sentam para ver uma manhã
Que escavam um lugar
Para a saída.

(de Homens que são como lugares mal situados, Fundação Manuel de Leão, 1998)

EXPLICAÇÃO DO HOMEM

Não me verga a velhice nem o peso do crânio
Mas os olhos cansados na dor de te não ver.
O chão tornou-se a última paisagem.
No mais longínquo da terra te levantas
E vejo ergue-se a poeira dos teus pés.


EXPLICAÇÃO DA AUSÊNCIA

Desde que nos deixaste o tempo nunca mais se transformou
Não rodou mais para a festa não irrompeu
Em labareda ou nuvem no coração de ninguém.
A mudança fez-se vazio repetido
E o a vir a mesma afirmação da falta.
Depois o tempo nunca mais se abeirou da promessa
Nem se cumpriu
E a espera é não acontecer – fosse abertura –
E a saudade é tudo ser igual.

(de Explicação das árvores e de outros animais, Fundação Manuel de Leão, 1998)

Quando nadei profundamente na morte
Trouxe a mão ao cimo – era a superfície
O arbusto húmido a respirar fora das águas
A embarcação da infância
A neblina escavada ao redor da ilha desigual. Na vegetação

Que rodeia o homem solitário. Entrei profundamente
Trouxe a mão à tona da morte – o reflexo
Do remo movido sobre a agulha da bússola
O peixe que espera sobre todas as águas

Quando aquática a flor no tronco escavava
A minha última jangada nas correntes

(de Dos líquidos, Fundação Manuel de Leão, 2000 / 2ª ed: edições Quasi, 2003)

[há uma página com mais informação e poemas]

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