24.7.03

POETAS IMPROVÁVEIS (I)

LENA d’ÁGUA

Nasceu em 1956 em Lisboa.
Uma das vozes com mais sucesso na explosão da nova música portuguesa no início dos anos 80, remeteu-se entretanto à discrição. Recentemente foi vista num programa de televisão pouco aconselhável.

7.

fio de trovoadas incandescentes na lã do trigo
beijando os pés de algodão neste tremor emba-
lante do âmago.
mar de cerejas penduradas num calmo torpor nú
de caracóis dourados nos dedos.
num êxtase de dois lagos profundos, sonho
na vertigem colorida da descolagem
dia felino, dia azul de princípio de mundo
explosão de nascer de sol posto sob o corpo
de um deus renascido da seiva
fervendo nas veias de uma árvore escondida
da cidade tumefacta.
Redescobrir constante de brando e cru chamamento
da mãe Terra na forma de uma carícia
transparentemente nascida na boca, sentida
nos dedos, amada nos cabelos da constelação
que tu és e ninguém sabe.

26.

depois saí para a chuva
sozinha e improvisada
corri perdia de amor
no corpo nos olhos
na noite esquecida de betão
e de mim

desvaneço agora o sorriso e as lágrimas
sou folha no vento, as mãos abandonadas
do lado de cá da vida

38.

parte comigo
só uma vez
toca-me no ombro
para um passeio de barco sem vento nem sol
num dia cinzento de Verão

chama-me no campo das oliveiras
e das pedras do rio manso
onde embarcámos um dia no silêncio da chuva

parte comigo
só uma vez

(de A mar te, Ulmeiro, 1984)

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