13.9.05

[o canto e a ceifa VI]

FERNANDO PESSOA

«Ela canta, pobre ceifeira,»

(versão publicada na revista ATHENA, nº 3 - Dezembro de 1924)


Ella canta, pobre ceifeira,
Julgando se feliz talvez;
Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia
De alegre e anonyma viuvez,

Ondula como um canto de ave
No ar limpo como um limiar,
E ha curvas no enredo suave
Do som que ella tem a cantar.

Ouvil-a alegra e entristece
Na sua voz ha o campo e a lida,
E canta como se tivesse
Mais razões p'ra cantar que a vida.

Ah, canta, canta sem razão!
O que em mim sente stá pensando.
Derrama no meu coração
A tua incerta voz ondeando!

Ah, poder ser tu, sendo eu!
Ter a tua alegre inconsciência,
E a consciência d'isso! Ó céu!
Ó campo! ó canção! A sciência

Pesa tanto e a vida é tam breve!
Entrae por mim dentro! Tornae
Minha alma a vossa sombra leve!
Depois, levando-me, passae!

(da 2ª edição fac-similada, Contexto, 1994)

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