ANTÓNIO BARAHONA
POEMA UNÍVOCO
À MANEIRA DE PREFÁCIO
À MEMÓRIA DE FERNANDO PESSOA
«Dó é unívoco do sentimento de compaixão e da primeira nota
da escala musical.» D.P.I.
Eu tornei-me céptico, épico profissional, 
mente amorosamente natural ao frio das 
formas, lisérgico ao luar entre as urtigas 
Desde Ptolomeu que andamos às cegas 
com sistemas que são maneiras de treinar 
o pensamento, mas não poemas que contêm 
o mo(vi)mento, isto é a eternidade com 
provada no esquecimento do assassino 
tom da liberdade dos leques lique 
feitos sobre os peitos perigosos das 
mulheres amazonas uni-seio-nuas 
músculos de terra a cintilar d'estrela 
na amplidão do arco do cavalo branco 
a sangrar do flanco um navio à vela
O perigo é mais sólido do que a pedra, mais 
imóvel e mais branco e mais duro, por isso 
a dureza consiste numa vantagem por extenso 
nas pedras e nos versos que se aproximam do 
perigo: os diamantes e os universos de som 
sacrário sempre vivo no templo dos poetas 
que uivam com voz de trigo e despedem setas
A dureza também consiste numa vantagem dos 
seios, e na pronúncia vagarosa de dizer: 
mulher de pedra viva dos oleiros, orquídea 
dos luzeiros contra a perfídia do mundo, 
escultora de escultores no mais profundo 
da pedra, petrificada em ave dura que per-
dura sobre a neve eternamente suave
As notas do poeta unificam-se em torno do Nu: 
castidade perante a escultura do culto 
do arbitrário do signo exacto, des-
construtor com pacto do elo da linguagem e 
das coisas, engenheiro da maquinaria da 
transcendência metalicamente real no re-
flexo d'olhos ténue d'Eglantina que sorri 
anterior ao naufrágio onde perdi Dinamene
Adquirir uma «existência opaca» a fim 
de ouvir o órgão nas margens do Sena quando 
poemas ao poema o poeta escreve insinuando 
que a loucura amadurece, despojado de memória, 
proscrito da história que não o esquece, com-
fundindo-o com os símbolos, o quadrado e o cír-
culo, signos da transcendência realmente meta-
lica nas teclas que desprendem pombos quando
Convenhamos que o amor é experiência, base 
da ciência da poética capaz de reconstituir 
a ausência: o poeta é instrumento e ins-
trutor, conhecedor da cadência, repetidor 
até em termos de ternura que enternece o texto 
o homem fragmentado entenebrece o gesto
Doença, não há dúvida, na direcção de um 
vento qualquer a omnipresença da barca unívoca 
de velas desfraldadas a navegar pacífica e à 
vante o elefante a ganir a teologia da mulher 
um cavalo branco galopante a emergir do mar 
terrífico claustro da escrita que contém a vida
Convenhamos uma vez mais que o amor é ex-
periência, o amor na cama consciente de uma 
técnica, o amor na lama diferente de na água 
laminada, a pele macia da lama sem lâminas, 
a pele cortada de mágoa na água em chamas 
e a palavra fria no poema, flébil mosca, resto 
d'orquídea seca na encosta ao sol d'agosto
mor não aquece ao sol, não voa a enegrecer 
o ar, não descende de flores: é a fúria de 
florir no caos, primeira letra do alfabeto 
lua no seu grito, exclamativa na arte de 
agarrar silêncio, metê-lo numa caixa com 
mãos ávidas, escrevê-lo numa faixa de papel 
tumultuário, enquanto esquiva vai à garra 
a barca unívoca num mar de mel e laca
Alegria da morte unificada suave, sensitiva 
serenidade de agulha e gume, a única pedra 
fragmentada na praia, etérea de esmeril, 
tépido como um til na palavra manhã a viver
no verão sobre o estrume estético das vacas 
sagradas trepidantes no seu vácuo cósmico
A única pedra, dizia, ficou a ver a barca uni-
voca, que convoca a glória do poeta: uni 
verso, verificado a ver a barca equívoca, 
estame de rosa na relojoalharia do poema, regra 
íntima da necessidade do descuido cuidadoso 
de noite e de dia e sem sistema d'ir à guerra
Onde está o tempo que ainda não vivi, o qual 
se «chama futuro»? Do mal o menos da vida, da 
vida o mais do menos que vivemos à despedida 
só, no escuro, a pontuação de luz, os líquenes 
das vírgulas inspiradas, como no inicial 
poema unívoco as mulheres amazonas uni-
ficadas com seus leques liquefeitos 
sobre os peitos perfeitos como diques
Boavista, 21-2-77.
(de Pátria Minha, Fiel do Amor, 1978)