ADÉLIA PRADO
Nasceu em Divinópolis, Brasil, em 1935.
Em 2000, a editora Cotovia editou em Portugal o seu primeiro livro, Bagagem.
Com licença poética
Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
- dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.
Para comer depois
Na minha cidade, nos domingos de tarde,
as pessoas se põem na sombra com faca e laranjas.
Tomam a fresca e riem do rapaz de bicicleta,
A campainha desatada, o aro enfeitado de laranjas:
'Eh bobagem!'
Daqui a muito progresso tecno-ilógico,
quando for impossível detectar o domingo
pelo sumo das laranjas no ar e bicicletas,
em meu país de memória e sentimento,
basta fechar os olhos:
é domingo, é domingo, é domingo.
(de Bagagem, 1976)
Morte morreu
Quando o ano acinzenta-se em agosto
e chove sobre árvores
que mesmo antes das chuvas já reverdeceram,
da mesma estação levantam-se
nossos mortos queridos
e os passarinhos que ainda vão nascer.
"Ó morte, onde está tua vitória"?
Eh tempo bom, diz meu pai.
A mãe acalma-se,
tomam-se as providências sensatas.
Todos pra janela, espiar as goteiras:
"Chuva choveu, goteira pingou
pergunta o papudo se o papo molhou".
Pergunta a menina se a vida acabou.
(de Pelicano, 1987)
De amor
Assim que se é posto à prova,
na cinza do óbvio, quando
atrás de um caminhão vazando
o homem que pediu sua mão
informa:
'está transportando líquido'.
Podes virar santa se, em silêncio,
Pões de modo gentil a mão no joelho dele
Ou a rainha do inferno se invectivas:
Claro, se está pingando,
Querias que transportasse o quê?
Amar é sofrimento de decantação,
Produz ouro em pepitas,
Elixires de longa vida,
Nasce de seu acre
A árvore da juventude perpétua.
É como cuidar de um jardim,
quase imoral deleitar-se
com cheiro forte do esterco,
um cheiro ruim meio bom,
como disse o menino
quanto a porquinhos no chiqueiro.
É mais que violento o amor.
(de Oráculos de Maio, 1999)
[poemas retirados de Poesia Reunida, 10ª ed: editora Siciliano, São Paulo, 2001]
POEMS FROM THE PORTUGUESE
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