7.8.03

[em Barcelona]

Gostava de andar como o Caetano, sem lenço nem documento.

Mas preciso de lenço para limpar o suor, e do documento para provar que nao sou um marroquino ilegal.
[em Barcelona]

Hoje foi: La Pedrera (Casa-Museu Gaudí) - Fundació Tapiés - Centro de Cultura Contemporânea - Museu Nacional de Arte Contemporânea.

Ver tanto museu duma vez só confunde muito. Mas é uma confusao fértil.

6.8.03

[em Barcelona]

Vi uma exposiçao temporária, no Museu Nacional de Arte da Catalunha, dedicada à arte oriental das colecçoes reais de Espanha.
Contra a ideia que se tem de que os espanhóis sao sempre injustos com os portugueses, há inúmeras referências a Portugal. Antes de mais, grande parte das peças ostenta a designaçao de 'Arte Indo-Portuguesa'.
Depois, fica-se a saber que: se o rei nao fosse o mesmo em ambos os países, Espanha nunca teria conquistado as Filipinas; os produtos (incluindo obras de arte e peças litúrgicas) oriundos do Japao, da Índia e da China, chegavam a Madrid passando por Lisboa; quem popularizou o (agora) tradicional 'abanico' em Espanha foi a mulher de Filipe II (I de Portugal), Maria, a portuguesa.

Já agora: as reais colecçoes, pelos vistos apenas têm um biombo de arte Nambam, que só tem figuras de japoneses, enquanto que em Portugal temos uns poucos, com os famosos narizes compridos.
[em Barcelona]

No Museu de Arqueologia, numa parte dedicada à Cultura Púnica (séc. III/IV a. C.), vejo umas pequenas figuras de barro com os braços abertos que parecem Cristos, icrivelmente parecidas com as esculturas de Rosa Ramalho.
[em Barcelona]

Quase peregrinaçao, monte acima, para ver museus.

Há uma zona de Barcelona, parecida com algumas de Sintra, que tem muitos museus. Sobe-se, visita-se o Museu de Arqueologia, depois o de Etnologia, depois o Museu Nacional de Arte da Catalunha, por fim, a Fundació Juan Miró, que se fica a perceber muito melhor depois de ver os outros.

4.8.03

[em Madrid]

Fui ontem ao Prado e ao Rainha Sofía.
As Metamorfoses de Jorge de Sena marcaram este dia: primeiro, a impressao de ver os Fuzilados do 3 de Maio de Goya, que eu só conhecia de fotografias e que ganha outra dimensao ali ao pé; depois, no caminho até ao Rainha Sofía, parei num mercado de rua de livros e a primeira coisa com que me deparo é um monte de revistas National Geographic e no cimo de tudo o número de Fevereiro de 1974 que contém a fotografia de um velho do Bornéo a dançar e que motivou a Sena uma belíssima metamorfose que dedicou a Ruy Cinnatti - andava atrás deste exemplar, por tudo o que é alfarrabista em Lisboa, desde que li pela primeira vez as Metamorfoses, há uns dez anos atrás.

Além de tudo isso é indescritível a sensaçao de ver tanta obra de arte num só dia.

2.8.03

Antes de ir para fora quero deixar aqui alguns pontos de visita, para vários gostos, que recomendo (sem comentários, porque não os sei fazer):

Aqui não há poeta;

Tempo Dual;

Voz do Deserto;

Lugar da Incerteza (acho que é o sucessor do Metrobloguitano, que se calou de repente);

Poesias e Prosas e

Little Black Spot

Até breve!

(espero encontrar cybercafés para dar notícias...),

1.8.03

[diz RAE "(...)Para um cristão só contava um acontecimento, o do juízo final, para os modernos o fim da dialéctica da servidão.(...)" - ora para nós, cristãos, o Juízo Final não era 'um' acontecimento - é 'o' acontecimento.]

T. S. ELIOT

BURNT NORTON

I
O tempo presente e o tempo passado
Estão ambos talvez presentes no tempo futuro,
E o tempo futuro contido no tempo passado.
Se todo o tempo é eternamente presente
Todo o tempo é irredimível.
O que podia ter sido é uma abstracção
Permanecendo possibilidade perpétua
Apenas num mundo de especulação.
O que podia ter sido e o que foi
Tendem para um só fim, que é sempre presente.
Ecoam passos na memória
Ao longo do corredor que não seguimos
Em direcção à porta que não abrimos
Para o roseiral. As minhas almas ecoam
Assim, no teu espírito.
Mas para quê
Perturbar a poeira numa taça de folhas de rosa
Não sei.
Outros ecos
Habitam o jardim. Vamos segui-los?
Depressa, disse a ave, procura-os, procura-os,
Na volta do caminho. Através do primeiro portão,
No nosso primeiro mundo, seguiremos
O chamariz do tordo? No nosso primeiro mundo.
Ali estavam eles, dignos, invisíveis,
Movendo-se sem pressão, sobre as folhas mortas,
No calor do outono, através do ar vibrante,
E a ave chamou, em resposta à
Música não ouvida dissimulada nos arbustos,
E o olhar oculto cruzou o espaço, pois as rosas
Tinham o ar de flores que são olhadas.
Ali estavam como nossos convidados, recebidos e recebendo.
Assim nos movemos como eles, em cerimonioso cortejo,
Ao longo da alameda deserta, no círculo de buxo,
Para espreitar o lago vazio.
Lago seco, cimento seco, contornos castanhos,
E o lago encheu-se com água feita de luz do sol,
E os lótus elevaram-se, devagar, devagar,
A superfície cintilava no coração da luz,
E eles estavam atrás de nós, reflectidos no lago.
Depois uma nuvem passou, e o lago ficou vazio.
Vai, disse a ave, pois as folhas estavam cheias de crianças,
Escondendo-se excitadamente, contendo o riso.
Vai, vai, vai, disse a ave: o género humano
Não pode suportar muita realidade.
O tempo passado e o tempo futuro
O que podia ter sido e o que foi
Tendem para um só fim, que é sempre presente.

[...]
V
As palavra movem-se, a música move-se
Apenas no tempo; mas o que apenas vive
Apenas pode morrer. As palavras, depois de ditas,
Alcançam o silêncio. Apenas pela forma, pelo molde,
Podem as palavras ou a música alcançar
O repouso, tal como uma jarra chinesa ainda
Se move perpetuamente no seu repouso.
Não o repouso do violino, enquanto a nota dura,
Não isso apenas, mas a coexistência,
Ou digamos que o fim precede o princípio,
E que o fim e o princípio estiveram sempre ali
Antes do princípio e depois do fim.
E tudo é sempre agora. As palavras deformam-se,
Estalam e quebram-se por vezes, sob o fardo,
Sob a tensão, escorregam, deslizam, perecem,
Definham com imprecisão, não se mantêm,
Não ficam em repouso. Vozes estridentes
Ralhando, troçando, ou apenas tagarelando,
Assaltam-nas sempre. O Verbo no deseto
É muito atacado por vozes de tentação,
A sombra que chora na dança funérea,
O clamoroso lamento da quimera desconsolada.

O detalhe do molde é movimento,
Como na figura dos dez degraus.
O próprio desejo é movimento
Não desejável em si;
O próprio amor é inamovível,
Apenas a causa e o fim do movimento,
Intemporal, e sem desejo
Excepto no aspecto do tempo
Capturado sob a forma de limitação
Entre o não ser e o ser.
De repente num raio de sol
Mesmo enquanto se move a poeira
Eleva-se o riso escondido
De crianças na folhagem
Depressa, aqui, agora, sempre -
Ridículo o triste tempo inútil
Que se estende antes e depois.

(de Quatro Quartetos, edições Ática, 3ª ed: 1983 - tradução de Maria Amélia Neto)
[Hoje tive que ir a um hipermercado. Tinham livros baratíssimos, e, entre eles estava O Lugar do Amor - uma edição belíssima, com um retrato do autor pelo incomparável Mário Botas. Trouxe os dois exemplares que lá estavam, mesmo sabendo que já tinha um cá em casa. Vou dá-los a quem mos pedir.]

ANTÓNIO OSÓRIO

Nasceu em 1933, em Setúbal.
Filho de Pai português e Mãe italiana. Advogado, foi Bastonário da sua Ordem. Começou a publicar poesia em 1972.
Está a ser publicada a sua poesia completa.

Amo-te
com pressa
de não acabar o amor.

*

Entrar contigo
dentro das searas
e depois
trigo
sairmos da terra.

*

Amo os loucos,
crianças tagarelando
que descobrem, instante
a instante, o mundo
e tudo enovelam
à sua translúcida maneira.

Não possuem maldade,
Mas ignorado amor
E incapaz poesia.

*

Gratidão de ser
por estes anos
e partículas restantes.

Pela amizade,
que chega a confundir o amor.

Pela bondade,
que torna a solidão desvalida.

Pela hombridade,
à altura do céu.

Pela beleza,
que só à santidade
sobrepassa.

E é flagrante, perdulária,
noutros renascente.

Gratidão
que nem sabe
a quem deve ser grata.

Pelas aves nutrindo os filhos
de penugem e voo.

Pela lentidão escrupulosa
da tartaruga, igual à de Plutão.

Pela leveza materna do vento
transportando pólen.

Pelo calor humílimo
da joaninha sobre a nossa mão.

E por estar na terra
uma só vez, ao sol,
nada pedindo, nenhum segredo,
como um velho lobo-do-mar.


CAMÕES

Lia-me Camões meu Pai.
A tristeza de ambos
se juntava, em mim crescia.
E a voz, a inalterável
mergulhia das palavras
procriavam sarmentosos liames.
(Basílico a Mãe depunha no lume,
a carne com alecrim perfumava).
O livro de carneira negra,
as letras juntas em oiro:
morros, alusões, muros
verdentos, o último da vida ouvia.
Amor doía, emaranhava.
Mordaça invisível. Em lágrimas,
minhas, de meu Pai e de Camões, voava.

(de O Lugar do Amor, Moraes editores, 1985 - Círculo de poesia)