19.3.08

[Depois jamais palavra dele]

HUGO CLAUS

IRMÃO


«É um osso duro de roer», disse ele, «duro como o diabo.
E uma injustiça, ando pela primeira vez a emagrecer.»

Ainda Outono lá fora, um campo de milho até ao infinito,
palavra aí está, infinito, finito.
Depois jamais palavra dele.

No esófago o tubo de plástico.
Dão-lhe soluços horas e horas. Não consegue engolir.

Ainda há vida na mão direita
que carrega a esquerda como um espesso lírio.
A mão ergue o polegar no ar.
Ele continua a dar recados até ao limite do declínio.

Ficou com a pele branca de criança.
E aperta a minha mão angustiada.

Ainda estou à procura duma semelhança, a nossa,
a inquietude dela,
a impaciência dele (não dar tempo ao tempo),
de ambos a desconfiança e a ingenuidade
e vou parar ao nosso passado inicial,
o de um mundo como um prado de rãs,
como um fosso de enguias
e mais tarde apostas, ténis de mesa,
leis domésticas, as 52 cartas,
os três dados
e a fome imoderada e fora de horas.
(Eu envelheço em vez de ti.
Alimento-me a faisão e cheira-me a mata.)

Agora o seu alojamento é comedido.
A máquina respira por ele.
Um aspirador chupa-lhe a expectoração.
Um estertor sai do diafragma,
e aí o seu último gesto: um arrastado piscar de olho.

Transmigração de alma. Um arrumar. Uma dose cortada.
O corpo ainda a minguar
e de repente na sua cara que estava morta
um franzido e um espasmo
e depois um olhar esbugalhado, desvairado,
insuportavelmente nítido, a fúria e o susto
de um tirano. Que verá ele? A mim, um homem
que vira a cabeça, com cobarde espanto das suas lágrimas?
Depois é dia e desatam-lhe os cintos.
E ele então para sempre

(tradução de Catherine Barel, in Uma migalha na saia do universo – Antologia da Poesia Neerlandesa do Século Vinte, selecção e introdução de Gerrit Komrij, Assírio & Alvim, 1997 – documenta poetica)

4 comentários:

Luís Sá disse...

Será este post emanação do nosso jantar em que se discutia entre outras coisas, piercings e a inexistência de literatura holandesa de renome? :p

Um abraço.

ruialme disse...

Luís, escapou-me a parte da conversa sobre literatura holandesa...
De qualquer modo, a razão de ser deste post é a morte, hoje, deste grande autor holandês. Este é um dos dois poemas traduzidos para português q eu conheço dele.

Luís Sá disse...

Então não te lembras? Mencionaste-o (já não sei se tu ou o CC) quando ou o José ou o Miguel professavam a inexistência de literatura holandesa relevante (a propósito da "profusa" herança vocabular por nós legada ao povo indonésio por comparação com o legado holandês).

Estive para mencionar a Etty Hillesum, cujos diários admiro, e dos quais infelizmente não conheço tradução em português. Talvez o Tolentino se lançe numa dessas, julgo que se enquadraria bem na colecção que vai dirigindo na Assírio e Alvim. Mas quem sou eu para mandar o providencial bitate?

Joana Serrado disse...

sera que ainda vai a tempo este comentario? Mas é interesante ver como Hugo Claus reivindica a eutanasia neste poema.
E os comentarios deste Luis (agora blogger inexistente) mostra apenas a ignorancia dele, claro...Va la ele perguntar aos holandesesa iteratura portuguesa de renome e eles respondem Pessoa (ainda que Pessoa para eles nao tenha nacionalidade, e seja " um poeta holandes" [ titulo de um artigo de Rob Schouten]