22.7.11

JOAQUIM MANUEL MAGALHÃES


[...]
A aproximação a qualquer poema instaura o caos. Perdida circula a sabedoria dos homens entre esses elementos esfarelando-se e contudo muro sempre a mais avançadas incursões. Por isso, a voz do analisador surge por vezes como salvação. Ele possui os instrumentos que não ordenam o caos, mas que medem os curtos elementos que se dispersam ou amontoam. E fornece essas medidas, e as relações ténues (misteriosa gravidade unindo as palavras) que os elementos entre si mantêm. Deste modo, abre uma pista, e outra, e muitas mais ainda, e vai dizendo que milhares de outras vão ser possíveis mais tarde, que mesmo estas palavras talvez não sejam senão atalhos sem saída que é preciso, apesar de tudo, tentar.
São todos, porém, analisadores de uma obra. Ninguém a documenta melhor em si senão o próprio leitor, e o crítico nem de ajuda serve quando o entendimento já se conseguiu. Porque só didáctica é a função do crítico: ele apenas poderá ajudar quem não entende. Porque desde que o leitor tenha entendido, seja de que maneira for, a obra, essa é que é a obra e não a que outro entendimento lhe oferece. Em literatura não há erro, só a repetição se condena. Porque literatura fá-la quem lê e quem cria, ela não é só pertença de um dos lados desta dualidade. A obra não é literatura, quanto o leitor não é literatura. Literatura é a obra mais o ler a obra. Criação e leitura têm que se juntar para que seja literária a obra.
E daqui que faça o leitor a literatura. E daqui que seja má a literatura se a leitura o for, apesar de a obra ser boa. (Má, porém, não quer dizer errada, pois que erro não existirá nunca nestes campos: má é deficiente, é de nível inferior a).
Digam-me o que disserem, disto não me desconvencem. Nem me livram deste terror em que me alegro quando subitamente me vejo fazendo com a leitura desta obra a sua conversão em literatura; quando descubro no caos que ela é agora para mim um certo caminho, uma certa força orientadora; quando penso na possibilidade de muitos outros lhe assentarem mais completos instrumentos (quer de sensibilidade quer de conhecimento) e assim lhe descobrirem pistas mais claras e seguras.
E humildemente me preparo para avançar. Porque sei que ao fazer, com a obra, a literatura, eu o faço porque primeiramente a obra me criou e me deu uma sua medida; porque sei que lê a obra o leitor antes que o leitor a leia, e será ela própria quem indica ao técnico da leitura qual o instrumento mais certo para a tentativa. Humildemente avanço para a criação de modo a com ela recriar.


(excerto do posfácio a Sob Sobre Voz, de João Miguel Fernandes Jorge, 1971 / reproduzido em Os Dois Crepúsculos - Sobre poesia portuguesa actual e outras crónicas, A Regra do Jogo, 1981)

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