14.5.17

JOHN ASHBERY


PARERGON

Somos felizes no nosso modo de vida.
Não faz muito sentido para os outros. Sentamo-nos para aqui,
Lemos, e andamos irrequietos. Por vezes é altura
De baixar a escura persiana sobre tudo isto.
A entidade que somos revolve num transe auto-induzido
Como o sono. Sem ruído o nosso viver pára
E entra-se como que num sonho
Nesses domínios respeitáveis onde a vida é imóvel e viva
Para entoarmos as únicas palavras que sabemos:

«Oh homens doloridos! Porquê tanto choro,
Tanta desolação nas ruas?
É o presente de carne, o que cada um de vós
No irregular caixilho da sua janela deveria manejar,
Nervoso até à sede e à morte última?
Entretanto o verdadeiro caminho é dormir;
Os vossos actos legítimos bebem um repouso insalubre
Do inclinado rebordo deste vaso, em segredo,
Mas é sempre altura de mudar.
Que certas faltas por omissão fiquem impunes
Não enfraquece a vossa posição
Mas este arbusto rasteiro em que vos segurais
É consequência sua. Adeus então,
Até que, sob um olhar melhor,
Possamos encontrar-nos consumidos, pois unicamente fazê-lo
Não passa de uma desculpa. Necessitamos do laço
De entrar nas vidas uns dos outros, olhos bem separados, a chorar.»

Como alguém que avança em frente vindo de um sonho
O forasteiro deixou aquela casa num passo apressado
Deixando para trás a mulher com cara em forma de ponta de seta,
E todos os que para ele olhavam interrogavam-se sobre
A estranha azáfama à sua volta.
Com que rapidez as caras se acendiam quando passava!
Era notável como ninguém dizia nada
Para deter o rio do seu passar
Subido agora a níveis de inundação, enquanto no passeio cheio de sol
Ou no resguardo de algum átrio
Ele gozava o seu prazer, selvagem
E meigo com aquilo que contemplava.
Mas todos sabiam que ele só via aspectos,
Que a continuidade era feroz para lá de qualquer devaneio de que durasse
E virou a cabeça para o lado, e deste modo
A lição se espraiou pelo interior da noite:
Alegres os brilhos, e no escuro mais escuros ainda,
Embora de uma alegria imortal, apanhada naquela ratoeira.



(in Auto-Retrato num Espelho Convexo e Outros Poemas, tradução de António M. Feijó, Relógio d’Água editores, 1995 / original de The Double Dream of Spring, 1976)

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