6.7.03

[Passei a manhã deste Domingo no Museu Nacional de Arte Antiga, aproveitando a borla.]

JOÃO MIGUEL FERNANDES JORGE
nasceu no Bombarral em 1943. Tem cerca de 40 livros publicados, entre poesia, ficção e reflexão/ensaio sobre arte.

São surpreendentes e subversivos estes poemas. Aliam a atenção aos pormenores e o erudito conhecimento das obras e seu contexto a uma imaginação não fantasiosa.
João Miguel Fernandes Jorge desvia-nos do mero pitoresco e do factual para nos remeter para uma dimensão mais profunda das obras sem pretender estabelecer roteiros ou interpretações formais.

DESCIDA DA CRUZ

Fez-se homem para que nos aproximássemos da ideia
de deus;
manifestou-se através de um corpo para que recebêssemos
a ideia do pai invisível;
suportou as injúrias do homem para que pudéssemos herdar
a imortalidade.
E perdemos o olhar no horizonte;
uma lama podre a oriente e no ocidente.

/círculo de Quentin Metsys, 1510-20/

OS FUMADORES

A bolsa de cabedal está cheia de bom tabaco holandês.
Levaram-me para a lareira onde ardia um lume
de teixo. Em grande sertã de cobre frigiam os peixes
e uma espécie de pão. A um canto mais escuro
uma candeia,
mas dava para ver: o homem mijava de encontro à parede
e logo um outro se lhe seguiu. A taberna cheirava à
humidade marítima e a tabaco; o meu dedo polegar
calcou o que me ofereceram e acendi-o com uma acha
erguida do lume.
O escuro da sala e o fumo dos cachimbos cedia a todos
esses homens pesados corpos amassados de vento e areia
das dunas: confundiam-se com um ponto de luz que
reflecte no vidrado de um pote de grés, numa garrafa
que se esvaziou com um som de límpido claro-escuro flamengo. Fumam. Como
quem confia as preocupações a um amigo
para depois se sentir como quem viu sonhos na sua noite.

/David Téniers, 2ª met. Séc. XVII/

ARCANJO S. MIGUEL

Miguel, o anjo, calcário branco de placidez.
Era pelo S. Miguel e o Outono tinha já iniciado
a descida dos seus vermelhos escuros. A banda
do Carvalhal percorreu a vila e tocava na gare
da estação. As crianças da escola vestiam as
batas brancas e tinham nas mãos ramos de flores.
O comboio entrou na estação ao som de uma marcha.
Não sei quem vai chegar. Não sei quem vai partir
pelos anos cinquenta do século passado
neste meu sonho recorrente.
Não me vejo entre essas crianças, mas reconheço
alguns rostos.
A locomotiva entra na gare. Pesada. Envolta
em fumo. As vinhas, vermelho castanho macerado
sobrepõem-se à toada monótona da banda: procura
dar alegria ao espaço de toda a gare; não
consegue.
Era pelo fim de setembro. Pelo S. Miguel: o
plexus solar incendeia todo o peito
desde o triângulo divino. A música desce, cai
como se fosse chuva, fria, muito fria
sobre a aldeia da vila,
como quem enterra, brutal,
um prego no meio dos olhos.

/esculturas portuguesas, séc. XV e XVIII/

CADEIRA DE SECRETÁRIA

Cadeira de secretária -
na sua forma de cadeira reside o que de mais
sedutor existe no mobiliário ocidental; trago alguns
dos meus versos na sua imagem: cadeira Mic Mac,
as cadeiras de Beuys e de Scott Burton: uma, erguida
ao peso dos embutidos,
simuladas as outras duas, metafísicas, ao peso do cimento
e da pedra; cadeira de van Gogh; cadeira da filosofia da
pergunta,
trono tibetano dourado de James Lee Byars.

Cadeira de secretária -
entre ela e a vizinha cadeira de barbear, e também de
secretária, hesito - estão na mesma sala do museu.

Cadeira de secretária -
na masculinidade da sua forma
o corpo vai sentar-se, as pernas estendem-se
os colhões repousam no recortado rebordo do assento
almofadada reentrância disposta a receber o viril
bolário
quando as pernas descansam e a mão sustém, sobre o papel
de carta
setecentista pena.

/Madeira de Gonçalo-Alves, 3º quartel, séc. XVIII/

(de Museu das Janelas Verdes, Relógio d'Água, 2002)

5.7.03

AUGUSTO OLIVEIRA MENDES
«grandeza de homem: falhar o encontro e não perder o humor. grandeza de pássaro: estudar a migração das tartarugas. grandeza de poeta: serenar, quando no cockpit da morte o telemóvel nos falha.» - António Cabrita

Nasceu no Tramagal (Abrantes), em 1959. Publicou quatro livros, sendo que o quinto foi já póstumo. Dirigiu os 6 números da revista de literatura ibérica Canal.
Xúlio L. Valcárcel fala de um “rigoroso caminho emprendido na procura dunha voz auténtica, com tono e modulación proprios.” E José-Alberto Marques diz-nos que “o Augusto era um andarilho de estradas largas e horizontes longos. Não admitia o rectângulo como figura geométrica. Isso era apenas do tamanho dum pé.”
O facto é que a Biblioteca Nacional não o conhece de lado nenhum e algumas livrarias só por acaso.
Morreu em Dezembro de 2000.

Identificar a escrita majestosa e subtil, apontar obra, é falar de heroicidade num mundo poderoso e elitista. Arriscar falhar elegendo falsos grandes autores enquanto inevitáveis manchas negras salpicam imagens intocáveis, não é do agrado de quem faz da literatura um modo de vida com sobejos interesses de vaidade. Pois, diga-se que urge essa tarefa, complemento da tímida criação quase sempre nascida no receio de se perder em silêncios paladinos, quem usufrui de meios e poder revela-se incapaz de sacudir a poeira das mostras literárias promissoras. Dar a cara, colocar as mão no fogo pelo que crêem agora. Enfim, apenas evitar que tardem os escritores. Mas, o medo, a cobardia, a chacota egoísta e silenciosa dos literatos ajudam-nos a ser mais pobres e privam-nos da verdade.
[texto integral do Editorial do nº 6 de Canal - Verão de 1999]

Pela centésima pedra caída entre bicicletas novas
Nós éramos
Entre os cantos mais longos, um outro inverno
já crescido, os cantos centésimos de raposas
espreitando o olhar húmido já como argolas prisioneiras

Não vamos ficar por aqui

Vamo-nos aperceber da virtude que dança
com os cantos centésimos de raposas que
espreitam o olhar húmido da aldeia do declive
Vamo-nos aperceber da virtude que tarda

(de raposas que, publicações O Camelo e o Cachimbo, 1996)

O ânimo sediado, forte, no poema que não este
escrito talvez ontem num barco na Mancha
Poderia falar das águas que batiam, ferozes
ou das faces inquietas dos passageiros
Porém preferi escutar os trovões no mar
e quedar-me mudo sob a chuva gélida
Deitei borda fora néctares de rimas velhas
para me alimentar do verde bolor, insonso
E fugi quando a velha carcaça se afundou
perante o olhar cretino de um deus devasso
sentado e bêbedo nas nuvens sujas

(de Campesinos, publicações O Camelo e o Cachimbo, 1996)

Soam dedos, benignos E inteiros

Soam dedos, benignos E inteiros
No soturno eco dos sentidos Teus, mulher
Agora que respiras E amas essa náusea navegante
Como quem colhe pequenos frutos
de uma árvore fingida
E se acerca de angústias
crescidas ao acaso
numa terra sem nome, dó, desejo

(in Canal nº 1, Março de 1998)

Poema do amor entre rosas e outras
(Retrato de um olhar)


Ouvi uma vos de encantar
na menina crescida na areia de outros mares
para abençoar o beijo e um silêncio feliz
entre penas leves e flores perdidas

No chão, elevei o tom da tua memória
E sorri os teus momentos de ardor
O testemunho do olhar
A carícia apelou pelo teu nome
enquanto as mãos te falavam ao ouvido
sobre cores e perfumes de lugares bondosos
e as rosas do céu caíam, docemente
sobre os corpos estendidos no orvalho
de uma manhã que nascia

(de Emily e os Blues, Luz Lunar editora, 1999)

JANIS JOPLIN, I REMEMBER YOU

A voz, a doce voz cavada
reeleita na penumbra de um carrocel dourado
E nos lindos laranjais da terra vermelha
ei-la ali à espera de sinal
E de transe desesperado e sábio

(de Poemas dos Aranhiços nos Olivais do Sul, Black Sun editores, 2001)

4.7.03

Há largos meses que se pode ver, escrita a spray, a seguinte frase num muro do Dafundo:

Sinto muito a falta do meu raio de sol

(será que quem a escreveu tem consciência de que se trata de um dodecassílabo perfeito?)

2.7.03

PAULO PAIS
Não sei nada dele, a não ser que é o nome que subscreve um livro intenssíssimo, publicado na colecção Aprendiz de Feiticeiro (é o nº 26) em 1997, com o título Gravador de Chamadas. A obra está dividida em três partes (3 livros??).

IDANHA-A-VELHA

Após todos os vultos as mulheres
ficam sempre arrumando tudo
limpam o pó dos homens
abrem-lhes o caminho de volta
dão destino às coisas
encarreiram a vida

sentam-se rente aos sulcos da terra
prenhes de segredos
regam a paciência com o esperma que lhes cabe
aprendem com os gatos a desprezar em silêncio

velhas cúmplices da vida
tudo aprenderam para lá dos mortos


(de Notas de Campo)

III

Os anjos preocupam-se com a desordem do mundo
pressentem os fungos nos ossos dos que se deitam com frio
a densidade salina das lágrimas
o volume do medo das bestas na hora do abate

por vezes definem com astúcia a tensão do sangue
seguram a mão na pressão exacta controlam a voz com
aptidão exemplar


pai, gosto muito de ti
e a infância escorre pelo rosto da memória
entretidos os homens com os recados da inocência


(de Figuras de Apego)

Pôde ver por momentos na goela da terra o que
a terra faz nas entranhas
viu lá onde tudo se passa o nítido seio da terra
o grande silo do sangue
os rostos lésmicos dos mortos
o rasto factual da morte

esperou que algo de surpreendente acontecesse
talvez um verme gigante numa pápula vegetal
talvez um anjo finalmente vingador
uma luz

súbito a mão de deus cobriu-lhe os olhos ou era
o vidro limpo da rotina dos dias?

uma buzina lembrou-lhe que o mandavam avançar


(de Gravador de Chamadas)
HORA DE ALMOÇO NA CULTURGEST

Duas belas exposições.

Uma: A Arte dos Artistas . As colecções privadas dos artistas. Começa logo com um Duchamp pertencente a Julião Sarmento, que aliás poderia ser confundida com uma obra sua. Vamos por aí fora, num ambiente de variedade e diversidade fascinante. Jorge Martins tem um anagrama do seu nome feito por Maria Helena Vieira da Silva. Michael Biberstein uma colecção de 9 gravuras de Turner (excelentes para quem ainda tem a exposição da Gulbenkian fresca na memória). Paula Rego aparece nas colecções de Graça Morais e de Ruth Rosengarten.
Com peças de novos e consagrados, podemos redundar dizendo que os artistas têm bom gosto.
[Já agora: está lá uma obra pertencente a Pedro Portugal, cujo autor é de certeza um famoso anónimo bloguista que toda a gente anda a tentar descobrir quem é].

Outra: Viagens Fotográficas de Carlos Afonso Dias. Um fotógrafo que eu não conhecia. A mesma perspicácia e sensibilidade a fotografar pessoas na Nazaré e nos bairros antigos de Lisboa, nos anos 50, a Angola profundamente negra e as ruas de Hollywood, nos anos 60, ou as novas paisagens da nova Lisboa dos anos 90.

Estão as duas até Agosto: vou lá voltar.

1.7.03

MÁRIO CLÁUDIO
«Descemos desamparados, pois Mário Cláudio teve o cuidado de retirar todos os andaimes» - Eduardo Lourenço

Nasceu no Porto em 1941. Tem livros editados desde 1969. Duas entrevistas recentes: uma com Ana Sousa Dias na RTP2 e outra com Miguel Sousa Tavares na Revista Ler deste Verão.

Acerca de “Um Verão Assim” diz Jorge de Sena: «Há uma contida violência nesta obra, que não tem nada de invisível, e que transparece no fluir das linhas dela, como um impulso constante, no próprio jogo de uma serenidade ambígua. Creio que Baudelaire, se fosse vivo, e não apenas o glorioso clássico desta linhagem, gostaria muito de a ler.»

Notícias do Advento V
passas despercebida do amor do sono dos sonhos que não te conheço porque os esqueces sempre porisso acreditas que nunca sonhaste; agora a diligência que punhas no teunosso corpo arrumou-se com a mala com que viemos do sul um corpo inventa-se nunca renasce das cinzas em que o mergulhou o olhar mais atento; pode porém procurar-se um corpo quando dorme a si próprio se ignora no voo do seu torpor; nestes meses que constroem o advento do filho acordo debruçado sobre ti a mão direita dormente sob tua nuca investigo a ruga que te atravessa a testa digo-te tudo quase nada durmo outro sono contra ti entre o desejo que é o único filho meu o medo de te despertar sem sentido;

[princípio do “Capítulo Terceiro” de Um Verão Assim, 1974]