12.2.06

ÁLVARO LAPA

UM PASSEIO


Combinai os trevos. Reaparecei. Caminhai nos trevos amarelecidos do crepúsculo. Findai o mundo. Depressa ide. Reduzide a pérolas as gotas do suor, do medo. Caminhai sobre pérolas. Investide. Atormentai a possibilidade (única?) do lugar. Sem testemunhas, as tormentas. Os pios de encontro ao veludo verde das bancadas. A água-suor do medo. A liberdade sem testemunho. O fundo livre sem comparsa na rota exangue do crepúsculo. Os detritos, as escamas, os rumores. No cimento alteado formam-se os montes, precipícios em flor de bouquet imediato, a estoirar na neve imaginária da solidão. Um cão morre por nada. Dois cães matar-se-ão várias vezes. Impossível recomeçar. Todas as viagens conduzem «à casa» (H. Hesse scripsit). Caseira, domesticamente protestante (Joyce dixit?). reaparecer nas palavras, contar com outrem, fazer dois sem um, desaparecer. Ir e vir. Depois nada mais. Quatro, quatro, quatro vozes soltas. Civa vai e vem, conta-se.

(de raso como o chão, editorial Estampa, 1977)


O MAR SECO DO BARREIRO:
DESCOBERTA DE UM OU MAIS MORTOS

Seria em 1950. Ou um ano à frente. Pr'aí. A viagem custava horas, e horas, desde o Alentejo à doca. Corriam canções dessa distância, os homens cantavam-nas pelo caminho, rumo à fama.

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Compasso de sereias. São as sereias. Apitam, animam, erguem, distribuem, condicionam. Válvulas.

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Fabrico de cortiça, arte de tomar a cortiça (casca de sobreiro... mas ouvi dizer de um rico, o Soares: «tem a cara encortiçada, feio, feio») utilizável. Entre a fábrica e os portos vão carroças. Tudo atado com arames. Caem bocados (de cortiça). Os moços pulam, esgravatam, e vão vender os caídos. A quem há que compre.

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Dizer o seco. Porque tudo está seco no campo de léguas em volta do Barreiro. Um pó? um ácido (ar ácido)? Uma praga; ou algo de mais directamente «psíquico»? Verdade que os do Barreiro vão à praia. Tem lá toldos. Tem club. Tem cor verde e tem ping-pong. Carcaça e mulette, dita de omelette. Come-se, pincha-se, molha-se e seca-se, na praia do rio em que apitam sereias, estas de barcos, e as outras ao longe, as de ir e vir, pelos pés. Exibições, gloríolas, famílias e jogos vários, como nas praias. Tudo a pertence, como na vida. Em 2ª mão, passam-se as tardes. Ao sábado ferve. Multidão aparente. E em frente é Lisboa, como uma trama fantástica. Posta. A que ir à vezes. Onde não seca, assim. Ou: lá há luz.

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E os mortos, ontem? Foi num passeio. Iam rapazes e um deles por fora, só. Subia outeiros, com o vale em baixo, carril parado. No pasto seco, ervas sem dono, e a respirar o acido topou o só: um corpo posto (casaco? boina? memória de trapos) ali caído em sesta funda, e foi a correr o achador e disse aos colegas, e juntaram adultos e correram mais longe, pelo Lavradio e volta.

(de Barulheira, &etc, 1982)


- Não podes desanimar lê o qualquer. Lê o mesmo. Lê o simples. Lê sem livro. Lê e esquece. Vamos a Espanha. Ou ao rio. Ou à praia. Ver qualquer coisa que não leias. Tu és psíquico ou és físico és menos físico és pouco pai. Dá-me um bracinho olha o cigarro.

(excerto de Finnegans Wake, in Sequências Narrativas Completas, Assírio & Alvim, 1994)

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