4.2.09

ALEXANDRE ANDRADE


(…) Estou imóvel há pelo menos uma hora, à procura do encadeamento, do ritmo regular que é sucedâneo do silêncio absoluto. Encontro padrões na escuridão, não seguem nenhuma coreografia, nenhum ciclo, ludibriam os meus olhos, até a minha percepção, que devia saber melhor, disfarçam-se de alusões ou mnemónicas e já mordem a cauda ao pânico. Ignorar os estímulos, o frio intenso, ser dono de alguma coisa, fazer frente a este tropel que não me aproxima do fim da noite, empina e revolteia, bate-se com a enxurrada, fechar os olhos, fechar os olhos. Evocando aquele tempo em que encarava a poesia como o mais irredutível dos refúgios, lembro um poema e declamo-o em sussurros curtos e sincopados, sílaba a sílaba, lutando contra a saliva e contra a relutância de toda a caixa vocal. O poema é este:
Contém-no o que não existe:
Resgata-se agora a filigrana estreita,
Separa-se, e é contra a luz
De um Sol enevoado
Que se aguarda um fluxo ascendente,
Camada por camada;
Vou-te oferecer a mão como se salva uma rola,
E à maneira de um ósculo
Unir interior e exterior;
Ser eu caudal e conduta,
Estuário tranquilo da única
Verdadeira silenciosa beatitude,
Como no barro molhado outrora
Se escreveu.
e passou já por não poucas depurações. O ponto de partida é uma ideia de S. Tomás de Aquino. Segundo a sua opinião, qualquer ser finito tenderia para a realização, ou actualização, das suas potencialidades; realização essa concomitante com a posse, com o alcance de uma felicidade (beatitudo) ou bem final, indissociável, do seu ponto de vista, da contemplação de Deus. Todo o poema se desenvolve segundo este pressuposto. O primeiro verso acaba sendo o mais ambíguo. A potência não existe por si só, assim como a substância não existe sem a forma. Abusando um pouco da linguagem, pode-se afirmar que só o que não existe pode conter a potência, pois o que existe representa concretização dessa mesma potência. Este verso não faz qualquer sentido isolado, e os dois pontos remetem para o corpo do poema. Não quis ter o aspecto de quem procura carambolas místicas a todo o custo; procurei sempre as metáforas mais inócuas, dentro dos limites da adequação. A filigrana não representa senão o objecto do acto de resgatar, perseguir a intenção latente, oculta pela não existência (pisamos terreno traiçoeiro), assim como o nevoeiro obnubila o Sol. O fluxo ascendente evoca desde já a presença divina, sendo dado adquirido que Deus se assume como acto puro. «Unir interior e exterior», eis o verso que apenas graças ao instinto tem sobrevivido aos crivos sucessivos. Sinto-o em harmonia com a indefinição conceptual inerente a «Ser eu caudal e conduta», segunda etapa da imposição do sujeito poético, após o súbito e decisivo «Vou-te oferecer» (apreciem o ímpeto do som constritivo labial). A beatitude, único verdadeiro objectivo, é atingida na ausência de som e de movimento; em comparação com a turbulência do rio que a precedeu, será semelhante a um oceano eternamente abençoado pela calmaria. Os dois últimos versos reflectem a contingência deste percurso, a sua inscrição na própria natureza humana. Como no barro molhado se escreveu, antes de secar, promovido a mandamento.
Está exposto na Tate Gallery, de Londres, o quadro que me alimentou o ânimo quando chegou o momento deste poema. Chama-se Beata Beatrix, e foi pintado, cerca de 1863, por Dante Gabriel Rossetti. (…)

(excerto de Benoni, editorial Notícias, 1997)



DANTE GABRIEL ROSSETTI


Beata Beatrix, 1863
óleo sobre tela
86,3x66 cm
Londres, Tate Gallery

2 comentários:

Rita F. disse...

Gosto tanto do Rossetti! Que bela escolha.

{anita} disse...

Vim fazer uma visita...Obrigada por me (per)seguir!