16.2.09

IOSIF BRODSKII

TRANSATLÂNTICO


Os últimos vinte anos foram bons praticamente para toda a gente
menos para os mortos. Mas talvez também para eles.
Talvez o Todo-Poderoso-em-Pessoa se tenha tornado um tanto burguês
e use cartão de crédito. Pois doutra maneira a passagem do tempo
não faz sentido. Daí as recordações, as memórias,
os valores, as maneiras de sociedade. Esperamos não termos
gasto a mãe ou o pai ou ambos, ou uma mão cheia de amigos até ao
último, pelo facto de deixarem de nos povoar os sonhos. Os sonhos,
ao contrário da cidade, despovoam-se
à medida que envelhecemos. Por isso é que o eterno descanso
oblitera a análise. Os últimos vinte anos foram bons
praticamente para toda a gente e constituíram
a vida no outro mundo para os mortos. A qualidade dessa vida podia ser
questionada mas não a duração. Os mortos, supõe-se, não se
importariam de conseguir o estatuto de sem-abrigo e dormir em passagens
pedonais, ou de ficar a ver os submarinos grávidos regressarem
ao curral onde nasceram no fim duma viagem à volta do mundo
sem destruírem vida na terra, sem terem
sequer um pavilhão decente para içarem.
1991

(de Paisagem com Inundação, tradução de Carlos Leite, edições Cotovia, 2001)