13.4.09

RAUL DE CARVALHO

TAUTOLOGIAS

1958

A Irene Lisboa

O tempo imovível...
Irene Lisboa

Uns pingos de sangue
seco.
Umas rugas na cara
de semblante impávido.
Um olhar parado
e de vidro.
Um riso de espada
afiada.
Lágrimas? Esquecidas.

Apenas um som
movendo-se oblíquo
no tempo imovível.

Eis que o lápis pousa
e logo se arrepende.
Medita, primeiro.
E depois desiste.

Cansa-se, é o caso.
Perguntas tão várias
e tão parecidas...

Todas convergindo,
refluindo, indo...

No vaivém da alma,
carrinho de mão...

E impeditivas todas
que o lápis se fixe,
se ajuste, se ligue,
apanhe a memória.

E tudo indeciso
entre começar e recomeçar.

Quantas coisas sempre
e tão obscuras...

Por que fiz eu isto?...
E por que mo fizeram?...

Uma decepção
passageira outrora
que deixou de o ser.

Enfim, um destino
por demais puído.
Gasto, rebentado, é o que é.

Queixas ou desculpas
de outro mundo...

Que fazeis agora
comigo indiferente.

Deitado. Repleto.
Com sombras a mais.

Um corpo que ainda
permanece equívoco.

Tempo... que demora…


Um tempo em que o corpo
substituía
a alma...

Agora nem uma
nem outra coisa.

Um cansaço estreme.


E uma confusão...
Um distraimento
lívido...

Um pensar sem causa
nem predestinação.

O peso, a medida de cada palavra.
Auxiliando a alma.
O único auxílio.

Regista-se, e pronto.
Nada nos pertence.


Um entendimento
nebuloso,
teimoso.
Desesperado.

Uma aranha ou unha.
Cravando. Arranhando.
Imperceptivelmente.

Mas doendo tanto.


Grades. Muitas grades.
E os olhos passam
por elas.

Só os olhos. O resto
de nós em nós fica.

Exausto. Indisposto
a acompanhar-nos
por outros caminhos.

Tudo igual. Afinal
tudo igual.

Só esta casa
não muda.

Este ar.
Este fumo.
Este cheiro.
Esta gaiola.

Este corpo preso.
Esta alma aflita.
Esta inquietação
obscura, inanimada, certa, conivente.

Perseguindo o quê?
Coisas, coisas que não valem a pena…

Gosto imenso desta
camisa já velha.
É das poucas coisas
a que, durante a vida,
eu me habituei
e se me habituaram.

Faz-me companhia.
Pequena e gasta
sombra do fino ramo
dum salgueiro
no rio...


A dificuldade
de seguir um traço
até ao fim.

Há sempre um momento
em que uma recordação
muda o curso ao pensamento.

O coração contrai-se.
O risco foge.
A alma ausenta-se.

Nunca mais a gente
sabe aonde está.

Hoje igual a ontem.
E é tudo.

Gasto. Nu. Diferente
da mesma maneira.

A porta fechou-se.
Nunca mais se abre.
A mão todavia
bate por bater.

É por vício ou gosto?
Ou monotonia?

Os peixes
mesmo depois de apanhados
na rede
continuam a
debater-se...

Assim eu. A vida
é assim tão importante?...


Claras, claras coisas.

Muito exactas. Simples. Sóbrias e poucas.
Sem música. Alegres. Mas só de existir.
De estar ali. De se deixarem ver. Imunemente.

Leves, leves os passos de quem entra.
Um andar sem esforço, sem ambição de maior.

A não ser, talvez,
o desejo inconsciente
de não pedir
nem dar.

De ser, unicamente.


Desfiar
sem pressas
um rosário de contas
frias.

Sabê-lo pelo tacto.
Achar correspondências
felizes sem motivo.

Não ter mais sentimentos. Ter ideias.
Mas estas
limitadas e poucas. Meia dúzia.

Limpar a alma
com uma vassoura
Fora! fora tudo o que está a mais.


Fazer dos poemas
passeios.
Longos. Deslembrados. Meio loucos.

Um pêndulo.
Com a palavra agindo
por sua conta.

Águas irrigando
vidas alheias.

A nossa, seca.
Seca e longe. E longe.


Páginas, páginas soltas.
Uma coisa qualquer
que se esqueceram de juntar.

E ficou assim.
Esquecida. Solta. Inútil.


Medo. Medo que a memória
reincida na dor.

Os disfarces são
estas e as outras palavras.

As que não procuram
ser meigas nem belas.
As que são as nossas
únicas amigas.
As que não se iludem
a nosso respeito.
As que sabem tudo,
tudo da nossa vida.
Enfim, as nossas
fiéis companheiras.

Se não fossem elas,
ai de nós, enlouquecíamos…


Cada palavra
é uma comporta
num rio...

E o rio corre.
Sentimo-lo correr.
Há alívio, há mágoa,
há sossego nisso.

Voltaremos sempre
ao ponto onde o rio
começa a correr:

Antes não fora água.
Antes não fora mágoa.
Antes não fora rio.


Pedras, pedrinhas que se atiram.

E depois se apanham, se acolhem, se afagam, se espiam.

Uma ocupação
como qualquer outra...


Só desolação
à volta.
Que espectáculo triste
o azul da água
dum rio
correndo
desamparado
por entre campos e campos
áridos, secos, sós.

Sem palavra amena.
Sem carinho de asa.
Sem uma chaminé
com o lume aceso.

Sem árvore ou pessoa
que dê pela nossa
presença.

Que ajude a correr
Prazenteiramente
a água do rio.

Deste rio sem margens
ou talvez sem fundo.

Que nos molha as mãos.
Que nos tolhe a vida.

Horas e horas, dias e dias, anos e anos
sobre a mesma terra
que nos ignora.


Quem me dera pôr
um ponto final
nisto tudo...


26, 27, 28 e 29 de Agosto,
1 e 2 de Setembro de 1958.


POSFÁCIO

Creio que três palavras sintetizam, em minha consciência, a necessidade e o curso deste poema. São elas: lição, admiração, libertação.

Lição: de sobriedade, limpidez, precisão, emoção captada — que tudo isso eu vejo luminosamente espelhado na obra de Irene Lisboa. E lição esta que eu gostaria tanto de aprender um pouco... Porque vejo nela, hoje e talvez sempre, os essenciais pontinhos luminosos para que aponta, percebe-se, a mais forte ambição dum escritor ou poeta, aquilo que dá vida longa e digna ao que vai pensando e escrevendo, escrevendo e pensando...

Admiração. Já se sabe que a própria admiração — humedecida... — que se sente por um Escritor e obra que quase nos intimidam, nos desencorajam, nos fazem ver (nos abrem os olhos!...) a nossa pobreza, a nossa ignorância. Mas, o curioso, é que há conforto nisso, nesse puro sentimento de admiração sincera, uma nossa irmã.

Libertação, por fim. E apenas direi: Também em Literatura, neste tête-à-tête de autor para autor, o amor pelos outros é alienatório. Coercitivo. Um peso. Sobretudo em razões do estilo. Quando os sentimentos e o mais que a forma veicula e desnuda são comunicados, assim, tão infalivelmente... espreita-nos o perigo que sabeis qual é. A ele honestamente aludo, e é dele no fim e ao cabo — mas não por orgulho, por fidelidade, sim — que me quero libertar. Não passa este poema duma tentativa: humilde, duma vez; e julgo que necessária. Senti-o passo a passo (aqui mais, ali menos) mas sempre objectiva e serenamente. No fim, com algum contentamento. O de não faltar, digo, à responsabilidade que implica ter lido como eu li uma Obra que está, sinto-o, dentro e fora de mim, em mim e para além de mim...
A publicação do poema corresponde, muito, a este último desiderato.


2-IX-58.


(de Tautologias, 1968)

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