17.4.09

SILVA CARVALHO

A TARDE ILEGÍVEL ALEGRIA


A tarde ilegível, meu olhar roto de azul
perplexo na entidade da luz que em ramos
de árvore volteia verde e tremulina.
Sente-se a água num antegosto do ser,
mas que presença, nos arvora ou define?
Uma nitidez total, quem está aqui é aqui
mais do que texto ou pura necessidade,
a linguagem infiltra-se de súbito silêncio
e sente-se mentalmente a dor da mentira.
Venho até mim como uma apoplexia da sombra,
este calor atávico perdido nos sentidos
que se buscam e acham no perímetro do fogo,
não me reconheço de tanto me desejar vivo,
nenhum passado para nenhum futuro, mas o horror,
o súbito amor, estar presente como árvore
ou azul de céu irremediavelmente objectivo.
Preciso, cicio, voltar atrás, ao zelo e ao sigilo
da infância destituída ou pela memória cega,
uma origem que me abra, uma fonte que me diga
de onde a onde respiro, onde me encontro,
qual o lugar a festejar na pele da terra,
que tempo me inclui na sua desmedida.
Há possivelmente uma outra palavra exacta
para o que não é loucura nem age como acaso,
em que língua a possuir, em que canto revivê-la?
Nunca como agora o simulacro da vida me feriu
tanto de tão diversa maneira, até sentir
a morte me advém impossível ou difícil,
como se se tratasse de uma ideia ou de um mito,
do inexistente que galvaniza os poderes
do que se eleva como mediocridade e história.
Passei por muitos olhares seduzido pelo olhar,
nada me bastou ou foi peremptoriamente essencial,
como justificar tal ingratidão dos sentidos?
Que monstro se apossou de minha alma?
Voltar atrás, refazer caminho, sem lembrança
nem ilusões, soletrando pela primeira vez
uma estadia possível toldada por esta alegria.


7/1/87

(de Da Estupidez, Brasília editora, 1988)

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