3.6.09

[ver outras evocações aqui, aqui e aqui]

GLÓRIA DE SANT’ANNA


até que volte a ver-vos me reconhecereis
não pela face desnecessária mas
porque aí estareis apenas

e quando vos movimentardes (se)
a agitação perturbada que sereis
vos dará a imponderável consistência
de entre mim e vós

não haverá gestos e até nem vozes (acredito)
só a lancinante serenidade resultante
e o desconhecido imerso (ou emerso) azul alívio




mas por outro lado poderia romper-se também
num relâmpago visível pelo que se chama céu
a nossa alegria

e voariam pássaros inacreditáveis pelo que se chama céu
e poldros de crinas longas até ao vento
bateriam os cascos nunca ferrados em galope sobre
o que semelhasse campina

e alguém poderia afirmar que nos viu
pela força incontrolável da nossa alegria




(a força incontrolável da nossa alegria
que deslassa os fios de qualquer pensamento
e despedaça as palavras em risadas e lágrimas
e se alimenta do horizonte dos dias

e é como uma sentinela no umbral da porta à noite
molhada de luar e arrepiada pelo gume das folhagens
escolhendo em silêncio uma estrela longínqua
e simultaneamente é áspera e doce)

mas quem o afirmasse seria apontado
como espontaneamente louco voluntariamente interpondo-se

a vós

tão desesperadamente ocultos
nas linhas do meu rosto


(de Gritoacanto (1970-1974), in Amaranto / Poesia 1951-1983, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1988 – Biblioteca de Autores Portugueses; o 2º e o 3º poemas haviam sido antes publicados em Junho de 1972, no número 3/4 de Caliban, em Lourenço Marques)

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