[ver outras evocações aqui, aqui e aqui]
GLÓRIA DE SANT’ANNA
até que volte a ver-vos me reconhecereis
não pela face desnecessária mas
porque aí estareis apenas
e quando vos movimentardes (se)
a agitação perturbada que sereis
vos dará a imponderável consistência
de entre mim e vós
não haverá gestos e até nem vozes (acredito)
só a lancinante serenidade resultante
e o desconhecido imerso (ou emerso) azul alívio
mas por outro lado poderia romper-se também
num relâmpago visível pelo que se chama céu
a nossa alegria
e voariam pássaros inacreditáveis pelo que se chama céu
e poldros de crinas longas até ao vento
bateriam os cascos nunca ferrados em galope sobre
o que semelhasse campina
e alguém poderia afirmar que nos viu
pela força incontrolável da nossa alegria
(a força incontrolável da nossa alegria
que deslassa os fios de qualquer pensamento
e despedaça as palavras em risadas e lágrimas
e se alimenta do horizonte dos dias
e é como uma sentinela no umbral da porta à noite
molhada de luar e arrepiada pelo gume das folhagens
escolhendo em silêncio uma estrela longínqua
e simultaneamente é áspera e doce)
mas quem o afirmasse seria apontado
como espontaneamente louco voluntariamente interpondo-se
a vós
tão desesperadamente ocultos
nas linhas do meu rosto
(de Gritoacanto (1970-1974), in Amaranto / Poesia 1951-1983, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1988 – Biblioteca de Autores Portugueses; o 2º e o 3º poemas haviam sido antes publicados em Junho de 1972, no número 3/4 de Caliban, em Lourenço Marques)
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