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Em Paris, em casa de um amigo, João [Domingos Bomtempo] pôde presenciar um quadro de Chardin que não mais esquecera e havia de o tentar continuamente, Cesta de pêssegos com nozes, groselhas e cerejas. O quadro caía novamente pelo interior da sua atenção. No centro, os pêssegos ordenados, empilhados, aprisionados na cesta, era o que primeiro nos surgia, num leve muito leve contraste com o fundo, a parede escura, porque também eles eram escuros, principalmente os que se viam no rebordo da cesta. Havia contudo um pêssego, quase no centro da cesta, no centro do quadro, que clareava, mais claro do que as nozes à esquerda fora da cesta e onde uma luz incidia, ou mais claro do que as groselhas que, do lado direito do pêssego e do lado esquerdo das cerejas, estas encostadas, completavam a matéria orgânica. Havia ainda uma pequena cereja abandonada entre as nozes e as groselhas. A mesa também apresentava um matiz mais claro do que a parede. Mas a luz naquele pêssego era um segredo, como se viesse do seu interior e não do exterior, alguém no meio do nada a querer impor uma fé, um sentido a toda aquela morte. Se os frutos pudessem aguardar alguma coisa, aguardavam apenas o apodrecimento. Separados das suas árvores nada mais poderiam esperar. E um só pêssego parecia contrariar todo o abandono a que aquela breve vida estava votada. E é do abandono a que sempre estive exposto, mas que só agora com a morte de meu tio consciencializei, que esta composição deverá tratar. Por conseguinte, agora é que já não podiam existir quaisquer dúvidas acerca da natureza desta composição. E definitivamente um Requiem: lembrar a Deus as almas daqueles que me morreram. As almas, que para Deus são pêssegos sobre uma mesa.
[…](excerto de Natureza Morta, livros Cotovia, 1998 – três razões)
JEAN-BAPTISTE-SIMÉON CHARDIN
Basket of Plums, c. 1765
óleo sobre tela
Norfolk, Chrysler Museum of Art
óleo sobre tela
Norfolk, Chrysler Museum of Art
LÍDIA JORGE
[…]
Imerso, claro, o que não poderia ser doutro modo. O sentido da sua recordação, atendendo ao que recorda, mantém-se tão inviolável quanto o é, por exemplo, a razão profunda do pêssego. Nessa matéria, é um erro imaginar que as pessoas sejam superiores às aves, às trutas ou aos pêssegos. No pêssego, como em qualquer outro corpo, tudo converge para um caroço inquebrável que existe dentro e fora de todo o caroço, e que não se vê nem se acha na implosão dos frutos, nem na explosão deles até às coisas siderais. Sabe bem como um pêssego peludo, no meio dum prato, é um razoável mistério. Ora bem, não será perverso dizer a quem pretender achar o âmago dessa pequena recordação, que não o acha, mesmo que, um a um, persiga os passos de todas as figuras que patinharam nesse Verão secreto, até ao último instante. Misterioso como o pêssego – uma memória fluida é tudo o que fica de qualquer tempo, por mais intenso que tenha sido o sentimento, e só fica enquanto não se dispersa no ar. Embora, ao contrário do que pensa, não ignore a História. Acho até interessante a pretensão da História, ela é um jogo muito mais útil e complexo do que as cartas de jogar. Mas neste caso, porque insiste em História e em memória, e ideias dessas que tanto inquietam? Ah, se conta, conte por contar, e é tudo o que vale e fica dessa canseira! Se é com uma outra intenção, deixe-se disso – reprima-se, deite-se, tome uma pastilha e durma a noite toda, porque o que possa ficar da sua memória sobre a minha memória não vale a casca de um fruto deixado a meio dum prato. Como lhe disse, maravilha-me esse relato sobretudo pela verdade do cheiro e do som.
Não, não é pouco o cheiro e o som.
Se entender apenas o cheiro da fruta que lá tão rapidamente apodrecia, ou o som do mar tão idêntico em todo o mundo, sim, seria. Pense, porém, como o som das figuras pode ser a sua voz, o perfume delas pode ser tão intenso que constitua sem querer o halo perfeito das suas almas. Há outras coincidências para além do cheiro e do som.
Aconselho-o, porém, a que não se preocupe com a verdade que não se reconstitui, nem com a verosimilhança que é uma ilusão dos sentidos. Preocupe-se com a correspondência. Ou acredita noutra verdade que não seja a que se consegue a partir da correspondência? […]
(excerto de A Costa dos Murmúrios, 1988)
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