1.11.10

ILDÁSIO TAVARES


Canção dos Hipocampos


Somente a menina cega
foi quem viu os hipocampos
passeando pelos campos,
verdes campos, verdes mares
bravios de minha terra
onde mais nada gorgeia
nas frondes das carnaúbas,
lá em cima das palmeiras,
debaixo dos laranjais.

El-rei decretou agora
que toda a ave canora
que cantar, morre na hora;
e para mor segurança
chamou feras estrangeiras
para poluir palmeiras,
nossos bosques, nossas várzeas
onde não tem mais flores
nem tampouco sabiás.

Sorrindo, a menina cega,
no desprimor desta praia,
desenhou uma jandaia,
rabiscou um sabiá,
enxergando na cegueira
mais que a humanidade inteira
pelos campos hipocampos
como uma turba de vândalos
desembuçados dos céus.

El-rei cauteloso dita
do alto do trono asfáltico,
o século que viu a pomba
viu um Pablo e sua pomba
e mais dois Pablos safados;
por isso, no meu reinado,
nenhum passarinho canta,
se cantar, a morte é certa
na mira do meu fuzil.

Somente a menina cega
percebeu que os hipocampos
comiam cravos, crisântemos
e douradas borboletas.
Em cismar sozinha à tarde,
naquela tarde fagueira,
ela viu como pastavam
e vomitavam lirismo
pelas ventas de metal.

El-rei, vigilante e esperto,
bradou, “Me tragam poetas!”
principalmente os românticos,
e cozinhem suas barbas
em molho de água e sal;
e se forem tão imberbes
que não engrossem a sopa,
tragam-me as neves de antanho
que os anos não trazem mais.

Pouco a pouco os hipocampos
avançavam pelos campos,
e a meiga menina cega
nada podia fazer
senão vê-los e temê-los
aguardando sua hora
e a hora de todo o mundo
neste reino à beira mar.


(de Cantigas e Canções 1977-1993 / in Poemas Seletos, Fundação Casa de Jorge Amado, 1996 - Casa de Palavras)

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