29.6.11

ANTÓNIO REBORDÃO NAVARRO


POST-SCRIPTUM

Se a solidão nos rói os ossos,
se temos de negar
e é forçoso viver
entre paredes que não crescem nem mingam,
caminhar e sorrir e criar com esforço
urgentes intervalos para a dor,
em papéis sem mistério
faremos nossa história
tão simples como o bom e o mau tempo.
Entretanto,
falamos, discutimos,
cuspimos na paisagem,
desafiamos a tristeza
e mordemos o corpo da alegria.

(Não sei se tu me vês
quando a insónia te envia
anjos de roxos olhos
que te impelem, atraem
e, súbito, te deixam.

Não quero dizer que te ouço cantar,
porque não ouço,
quando os muros se apertam,
quando encho grandes dias
de silêncio e mais nada.)

Escrevo-te estas linhas de verdade
porque sei que não choras
quando a vida to ordena,
porque sei que és livre
a desprezares
a gordura dos dias.

(Não te dou minhas mãos,
sento-me contigo à mesa que puseste,
que sempre pões em qualquer sítio,
— nos barcos, nos cafés, onde tu estás —
tua ternura é uma longa mesa
onde se sentam todos os vagabundos.)

Dou-te vinte séculos de fome sobre o mundo,
vários milhões de cruzes e cadáveres nos campos,
inumeráveis dramas conjugais,
pavores de toda a espécie
e o esforço que minha mãe faz para não chorar.

Só te envio
o que guardei das quedas mais terríveis,
o olhar para trás, o reter uma lágrima,
o ter trazido na minha mão direita
o frio que cobria a mão de meu pai morto.

Não te falo de coisas ociosas
que nunca possuiremos,
não te falo de roteiros fingidos
nem te envio palavras pelo vento.

Não te peço para me dares a paz
que nunca tive
nem mesmo a que julgava ter e me levaste.

Não te ofereço o único e perfeito
lugar do mundo aonde
talvez ainda exista a felicidade,
mas junto as minhas ruas
de crianças, eléctricos e caixotes de lixo
às tuas ruas de ladrões, prostitutas,
máquinas e polícias.

Mais livre
(ou menos livre?)
do que dantes,
mais sereno
no entanto,
embora
a garganta
se encha
de acerados punhais
e uma ruga
recente
denuncie
que, às vezes,
num só instante
o mundo cresce
mais do que
em milénios,
abro todas as portas
e todas as janelas,
abro todas as veias
ao teu sangue,
vou contigo
por um caminho
por demais luminoso.


(de Aqui e Agora, 1961)

1 comentário:

ana teresa disse...

muito bom...e triste também. quanta angústia e negatividade corre das veias para a escrita dos poetas