11.1.14

[no dia em q completa 88 anos] 

JÚLIO POMAR


XXI

Pode pensar-se claramente pensado
que muitas senão todas as palavras que teimam
na parva intenção de domesticar um a um os mistérios do mundo
fazem a diferença entre uma coisa e outra na busca
do seu ser próprio, do próprio a cada uma
(passando em branco o sentido de ser, se é que o ser o tem
e o que ele diz de si próprio e sobre si próprio pensa):
eu ia a sugerir que as palavras todas mesmo
as mais levezinhas e precisas
são crostas de feridas em nós feitas
pelo roçar pelos outros ou por
nós próprios como por áspera e ignota parede.
As palavras são o barro com que modelamos o sarro
que em nós se vai depositando da
face e avesso do mundo
(que é pelo avesso que o mundo nasce e nele
o que à face aflora, galbo ou fenda).
Este é o direito
da palavra, a face que ela mostra mas
ao mostrá-la insinua que
pelo avesso sente o vício
de pedir a esmola de um catre na
grande caserna onde a comunicação arruma
as suas forças de intervenção rápida.



(de TRATAdoDITOeFEITO, publicações Dom Quixote, 2003)

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