23.1.15

ALBERTO PIMENTA


uma arte de «crueldade»

Efectivamente, nos últimos decénios, a evolução e o aperfeiçoamento da «metafísica tecnológica» e o consequente descrédito da ideologia, o seu carácter profundamente 'kitsch', derivado da sua falta de autenticidade, também do abismo entre realidade humana e teoria humana (e humanitária), a interferência crescente da informação (totalitária) na liberdade de conhecer, não deixaram à razão estética outra solução além da recusa cada vez mais obstinada e intransigente de aceitar os seus sistemas simbólicos, com a consequente luta aberta de princípios: uma luta perdida a priori, é certo, mas ainda não terminada e que não pode senão encarniçar-se de ambas as partes, recrudescendo apenas de crueldade e violência. Uma crueldade, da parte da poesia, como a entende Sanguineti:
«A crueldade indica, nesta situação, o grau de cinismo violento com que a palavra é capaz de propor uma nova dimensão classificatória, no acto de experimentar e criticar, dentro do horizonte da literatura, o nexo real das próprias coisas.»
Adorno usa uma terminologia semelhante:
«Quanto mais pura a forma, maior é a autonomia das obras e maior a sua crueldade.»
A crueldade reside ainda, e talvez sobretudo, no recusar-se a servir de objecto de prazer, de conciliação com a realidade. E assim que este tipo de arte esteticamente emancipada (acima de tudo esta chamada 'poesia moderna') não funciona como representação «clara e pouco usual» da realidade, nem como hipóstase de um mundo imaginado ou como ersatz para a frustração existencial, nem como mito: funciona como recusa de colaborar com a totalidade na sua lenta e constante destruição do indivíduo e da sua livre e autónoma consciência. Para esse maravilhoso, infelizmente mal conhecido Oswald Wiener, «cada frase é um ponto arquimédico para reduzir este mundo a escombros». E só assim pode ser. E Nanni Balestrini declara:
«Uma poesia portanto como oposição. Oposição ao dogma e ao conformismo que ameaça o nosso caminho, que solidifica as pegadas atrás de nós, que nos ata os pés, tentando imobilizar-nos os passos. Hoje mais que nunca é esta a razão de escrever poesia.»


(in O Silêncio dos Poetas, Livros Cotovia, 2003 / 1.ª edição: 1978)

2 comentários:

bea disse...

Não sei se este caminhar desconstrutivo da poesia actual, esta vontade poética de arrasar com o establishement, não é apenas resultado do mundo em que, poetas ou não, todos vivemos. A verdade é que esta poesia- retrato-de-mundo é intratável, pouco acessível ao vulgo. Veja Herberto Helder. É bom. Vai sê-lo sempre. Mas quantos o entendem para além do dizer de entendê-lo?

O Grunho disse...

Quando a poesia nao nos der prazer
É manda-la ir foder.