26.1.15

WENCESLAU DE MORAES


Eu tenho aqui um gato, um companheiro, um amigo, um grande amigo. Num livreco meu, relativamente recente ('O Bon-Odori em Tukushima'), que corre mundo... pelas tendas, fiz o elogio da gata, não do gato, como companheiro do homem solitário. Convém dizer que não mudei de aviso; mas a minha gata morreu, deixando-me um filhito, que me vi naturalmente obrigado a proteger, conservando-o no meu lar.
Ora, em cada Verão, o meu gato impõe-me a árdua tarefa de catar-lhe as pulgas que o mofino vai apanhar, aos cardumes, não sei onde, nos seus passeios vagabundos, atrás de gatas vadias, por estes quintais fora... O bicho, mercê do hábito, sujeita-se pacientemente, de ordinário, à operação; posto que por vezes se irrite, quando me dou ao trabalho melindroso de sacar do pêlo a pulga morta, ou quase morta; pois vou juntando todas, contando-as após, o que me dá útil informe, em referências ao acréscimo, ou decréscimo, nas tendências invasoras do desagradável parasita. Se o gato então se enfada muito, eu brado-lhe em voz bem alta, meio-agastado, meio-irónico: - «É para a estatística!» - E desato logo a rir, lembrando-me que muitos chefes de secretaria do meu burocrático Portugal, cavalheiros graves, engravatados, com óculos fixos nos narizes, irão importunando os seus amanuenses com a confecção de enfadonhas listas de bagatelas, de insignificâncias, e bradando-lhes também, como eu brado ao meu gato: - «É para a estatística!» - Pobre gato e pobres amanuenses!...


(in Wenceslau de Moraes, selecção de textos e introdução de Armando Martins Janeira, Portugália Editora, 1971 / original de Ó-Yoné e Ko-Haru, 1923)

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