14.5.19


JOÃO MOITA


Sentado ao fogo, junto da minha mulher, inquilina da minha solidão, recordo os anos da juventude. Nessa altura, o mosto fermentava nas caves da idade, e nós aguardávamos o vinho maduro com a impaciência dos sóbrios. Tudo foi preparação. Os enforcados amavam as nossas travessias, as mães rezavam com as mãos postas sobre o linho corrompido pelo sal. Onde as aves desertavam, erguíamos um templo de suspeita e sedução. Eram os dias do amor e do arrependimento. Hoje sei que a embriaguez é só esta indiferença com que pressinto o sangue nos dedos da minha mulher, que borda, e que a sabedoria nos abandona no fim. Ainda esta noite comungarei com deus. Amanhã serei as uvas frescas na videira.

(Rembrandt, Tobias e Sua Mulher)


(de Fome, in Uma Pedra sobre a Boca, Guerra & Paz, 2019)




3 comentários:

Rômulo Rangel disse...

Belo trabalho! Por causa desse texto lerei todos!
Me arrisco erupcionando umas memórias, se tiver interesse, visite-me.
https://oabissal.blogspot.com/

Flor disse...

Gostei muito do seu blogue 🤗

Vanessa Casais disse...

Adorei.

Vou voltar certamente.

Se me permite deixo-lhe as minhas sugestões de poesia, de jantares a tertúlias e concertos https://primeirolimao.blogspot.com/2019/10/10-ideias-para-quem-gosta-de-poesia.html

Vanessa Casais