SERGIO SOLMI
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Na poesia, o corpo está na vanguarda. Por isso o poeta prossegue inerme e cego: mas cego como Homero, não como Tirésias. Por isso a vida da poesia não reside tanto na ideia, e nem na palavra, e nem tanto, diria até, na metáfora quanto na atitude, no modo de surgir e recair do canto, no timbre e no matiz de uma voz e, em geral, nos «imponderáveis» mais intimamente ligados às reacções secretas e irreflectidas da nossa natureza física. E é por isso que a mais sólida arquitectura do canto é construída –sempre – sobre a individualidade mais acidental e única.
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É também necessária ao pensamento uma certa «idiotia»: uma lentidão desajeitada, a presença de obstáculos que um espírito superficial resolve e supera num abrir e fechar de olhos, A nossa reflexão mais verdadeira nasce quando descobrimos a monstruosidade, o carácter impensável «daquilo que é evidente». Para viver, a inteligência deve forçosamente nutrir-se de estupidez: o que seria uma inteligência sem alimento? Certos espíritos eloquentes e aproximativos, implacáveis dissertadores e sofisticadores, aqueles que procuram, numa discussão, ter sempre «a última palavra», dão-nos um exemplo desta inteligência ágil e vazia, sem sustento nem substância.
O nosso pensamento mais profundo nasce por vezes repentinamente do estagnar passivo da nossa vida, como o nenúfar da lama. No fervilhar infinito de tolices e inutilidades, na poeirada inconsciente a que chamamos «vida interior», é por vezes como um relâmpago momentâneo: as palavras insulsas e mecânicas, as incertas visões corpóreas que a onda limosa trazia consigo agrumulam-se e organizam-se, assumem forma: é o mistério carnal de toda a criação, a luz que irrompe sobre o caos.
(excerto de «Poesia, acordo supremo...», datado de 1925-1930, incluído em Meditações sobre o Escorpião e outras prosas, traduzido por Ana Cláudia Santos, acompanhado de desenhos de Fernando Mesquita e editado pela Barco Bêbado, em 2022)
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