7.10.03

Dom HÉLDER CÂMARA

Pensas, então,

que as fraquezas da Igreja
levarão o Cristo
a abandoná-la?
Quanto mais
nossa fragilidade humana
atingir a Igreja
- que é nossa e d'Ele -
mais
Ele a sustentará
com seu apoio
com seu carinho.
Abandonar a Igreja
seria o mesmo
que abandonar
seu próprio Corpo...

(de O Deserto Fértil, Civilização Brasileira, 1976)
A HISTÓRIA NUNCA PODE SER TRAVADA

A Cibertúlia é um espaço que prova que só se pode ser cristão a sério olhando para o mundo que nos rodeia com verdadeiro sentido crítico, mesmo correndo o risco de não dizer sempre o mais agradável ou previsível.

Creio que a fé se manifesta no silêncio e na rebeldia. Juntos e, necessariamente, sem medida.
Sou católico.
Este Papa foi eleito quando eu tinha 6 anos. Cresci na fé (estou crescendo...) durante o seu pontificado. Considero-o uma espécie de avô. E porque fui educado no respeito profundo pelos meus avós (e pelos mais velhos, em geral) - e porque os vi assumirem com dignidade o seu sofrimento e as suas fraquezas até ao fim, também me não repugna um Papa que não consegue ler o discurso, que se baba ou que apresenta sinais de grande sofrimento.
Nunca me passou pela cabeça pedir aos meus avós que abdicassem de o ser.

6.10.03

JOSÉ BLANC DE PORTUGAL

Nasceu em Lisboa, em 1914.
Foi meteorologista, adido cultural no Rio de Janeiro, vice-presidente do Instituto de Cultura e Língua Portuguesa.
Escreveu regularmente e para várias publicações, sobre música, literatura e arte.
Morreu em 2000.


Invocação

Espírito nocturno que um dia me tocaste
E em alto trono transformaste a flébil haste
Num simples gesto mágico pressabido
Que me erguia dos outros no olvido -
Ó nume - trasgo que teus dedos agitaste
E deles fizeste luminosos astros como fundo
Novo céu de nascimento que formaste
Máquinas simulando de um novo mundo

Musa-deus enganador esquecido:
Voltai de novo aos orcos que deixaste
Deixai-me só como me encontraste
- O tempo chega pra lembrança vossa:
O mal de criar de que fui f?rido
Bastará na obra secreta que eu possa.


Soneto Martelado

A tarde, e por de mais calma,
Afogou-me o que ficara da partida
Tudo me inventara, essa mentira querida
Que ficara fazendo as vezes da alma.
Passa e segue a triste gente calada
E o correio e a luz quebrada no muro
Trazem a tarde, recortando duro
O perfil triste e morno desta minha estrada
E choca e vem de mim até ao céu polido
Sobre mim e a rua desolada,
Uma ilusão que nada tem de alada
E é feita de aço puro e diamantes:
Não querer tornar-me no que era dantes.

(de Parva Naturalia, 1960)


Sapiência

Saber diéreses, ictos, anacruzas,
E os segredos
Dum cólon trocaico dímetro coluro
E as imanentes transcendências
Do hipercatalético anapéstico monómetro,
Saber que pseudo-sáfico é afinal jâmbico,
Não me fizeram o verso brando ou duro
Nem sequer, por sabê-lo, mais abstrusas
Ficaram as ideias destes versos estranhos
Quando saem de mim sem que os domine
Mais que no guiar da mão dormente.

Siabul, Librabis e Jazer
A meu serviço fossem por saber
A palavra, o sinal que os encadeiam,
Nenhum me daria o poder de escrever isto,
De me rasgar, abrir, horrorizar-me
E atirar ao mundo outra ciência:
Estes versos de que fui um molde apenas
Que são livres já pois neles habita
A sombra da verdade que me basta
Gerada pela Luz que não posso ver toda.

(de O Espaço Prometido, 1960 - este poema pertence à sequência Os Dons do Espírito Santo)


Prosaica

Se um dia vier a ser
- Tudo é bem possível,
Ou, melhor, o que é provável
Muito mais do que possível,
Entendamo-nos noèticamente -
Se um dia vier a ser - ia dizendo -
A besta apropriada para ter assento
Em um (ou mais) Conselhos de Administração,
Faço o propósito solene de assinar
Toda e qualquer lista de subscrição
Mesmo que caridosamente apenas
Político-literárias, de candidaturas...

O intuito óbvio podia ser;
Mas não é:
Quererei mostrar apenas que, por cá,
Ser uma besta é menos que insultuoso:
Taxonomiza apenas, cientificamente,
O que ainda não é só mineral,
O calhau, do qual e aliás
Se aproxima insensilvelmente.

(Que possua real vida ou não
è objecto de outra dissertação
mas, para a besta, que isso seja vida
é a consabida incerta sensação.)

(de Odes Pedestres, 1965)

5.10.03

O caríssimo Ferran pegou em dois poemas meus e traduziu-os, para Castelhano e para Catalão. Fico feliz!

[A internet permite isto: fazer amizades por esse mundo fora sem sair do quarto.]
JOÃO MANUEL BRETES

No dia da morte de J. B. P. (1914-2000)


Nem hoje ninguém ainda se assombra
ou quase ninguém se assombra
com essa voz volátil e com o vocábulo
escasso, indizível quase de tão singular
e cingido no meio de um largo campo
de palavras ou com uma só palavra
que de tanto significar fosse melodia só,
fôlego sereno para lá do Tempo
e depois caminho aberto para um bosque
afável de palavras sem pressa de serem lidas,
escutadas. Mas nesse tempo eu andava
em busca da Poesia, lendo e relendo os nomes
todos e tudo o que chamavam poesia ou poema,
o que aí cabia, e então esbarrei com o teu nome
a descompasso, José Blanc de Portugal,
e li ou ouvi algumas das palavras,
e achei que por mais que lesse outras ou outrém
ali estaria para sempre a imanência de tudo,
naquelas discretíssimas palavras.

(de Poeira, editorial Caminho, 2001)
ADÍLIA LOPES

Meteorológica


para o José Bernardino

Deus não me deu
um namorado
deu-me
o martírio branco
de não o ver

Vi namorados
possíveis
foram bois
foram porcos
e eu palácios
e pérolas

Não me queres
nunca me quiseste
(porquê, meu Deus?)

A vida
é livro
e o livro
não é livre

Choro
chove
mas isto é
Verlaine

Ou:
um dia
tão bonito
e eu
não fornico

(de Clube da Poetisa Morta, 1997)
ANTÓNIO RAMOS ROSA

NOVA ESTAÇÃO


Toda a gente passou a cumprimentar-nos
O sol é novo através da chuva.
Abrem-se as janelas com cuidado.
Uma frescura sobe ao compasso da terra.
Fomos crianças. As árvores tilintam.

É tempo de trabalhar
inquietamente.
Tempo de caminhar com presteza
pelas calçadas húmidas.
Tempo de ser vergastado pelo vento.
Tempo sério.

A cidade é grande, cinzenta verde.
Paremos.
Os troncos negros brilham.

Há um fervor no ar.
Mil centelhas pululam.
As fachadas são largas, lisas.
Respiremos.
Vamos continuar o dia.

O sol tão disseminado,
vibrante além nas pedras.
E sombra deste lado e quase azul.
Um animal lentamente passa
entre caminhantes apressados.
No tumulto dos metais entre os brilhos,
nós, sossegados, vemos.

(de Estou Vivo e Escrevo Sol, 1966 - este poema pertence à sequência Caminhar Habitar, dedicada "a Sophia de Mello Breyner Andresen e a José Blanc de Portugal")
JORGE DE SENA

CAVERNA


Ao José Blanc de Portugal

Tanta coragem, meu Deus, em perguntar por dúvida,
não vão os meus actos, amanhã pensados,
ser resposta,
vertigem à beira de um poço mais estreito que largo,
de Te querer tão puro e longe
isento do meu mundo.

Este pavor, meu Deus, de Te purificar em excesso,
de me afastar demais
para que não me compreendas ao dizer-Te o Nome...
Eu tiro-Te tudo, tudo, se principio a odiar-me!

Este pavor, meu Deus,
de Te reduzir ao som, à música das quatro letras;
e anda no tremer do ar,
quando o Teu Nome circula
e o ar não treme para as coisas,
fica afastamento
que não a força da Entrada em nós.

Chega o silêncio
passa uma aragem,
as árvores enchem-se de intervalos de nuvens,
- e eu assistindo completo ao ar em movimento!...
Este pavor, meu Deus, de Te confundir com o vento!

De Ti,
só o meu reflexo é irreparável.

19/6/41

(de Perseguição, 1942)
RUY CINATTI

4


Ao José Blanc de Portugal, especialmente

Ao longo dos campos
Picados pela chuva,
Alguém está brincando
Com alguém eu brinco.

O céu feito de água
Coberto de cinza,
Perdeu toda a graça
Já não faz sentido.

Ah! quanto é bonito
Ver a luz crescer,
As flores vão-se abrindo
E nós vamos ler.

«Uma vez, assim...
a donzela em perigo,
pegou de uma flor
- Eu fujo contigo».

A que olhas, amigo!
Acaso cansei-te?
Brinquemos de novo,
Fechemos o livro.

As águas correndo
Jogam mil segredos.
«Pensei: se quisesse...»
- As águas sorrindo.

«Vestida de branco,
Ei-la, a minha noiva.
Adeus companheiro,
A história acabou».

A meio do céu
O arco perdeu-se;
Julguei ainda vê-los
Em cores cristalinas.

Sorrindo ascendiam
Vestidos de oiro;
Contente e vazio,
E meigo eu rezava.
...............................
Agora, sozinho,
Passaram-se os anos;
As aves chilreiam,
A chuva é de lágrimas.

(de Nós Não Somos Deste Mundo, 1941)

4.10.03

[outros melros VII]

JUAN RAMÓN JIMENEZ

MELRO FIEL


Quando o melro, no verde novo, um dia
volta, e assobia o seu amor, embriagado,
agitando sua inquietação num fresco de ouro,
abre-nos, negro, com seu bico rubro,
carvão vivificado por sua brasa,
uma alma de valores harmoniosos
maior que todo o nosso ser.

Não cabemos, por ele, plenos, completos,
em nossa fantasia despertada.
(O sol, maior que o sol,
inflama o mar real ou imaginário,
que resplandece entre o frondor azul,
maior que o mar, que o mar.)
As alturas entornam seus últimos tesouros,
preferimos a terra que pisamos,
um momento chegamos,
em vento, em onda, em rocha, em labareda,
ao impossível eterno da vida.

A arquitectura etérea, frente a nós,
Com os quatro elementos surpreendidos,
abre-nos total, una,
com perspectivas imanentes,
a realidade solitária dos sonhos,
suas fascinantes galerias.
A flor eleva-se melhor à nossa boca,
a nuvem é de mulher,
a fruta seio responde-nos sensual.

E o melro canta, foge pelo verde,
e sobe, sai pelo verde, e assobia,
recanta pelo verde onde sopra o vento,
livre na claridade e na pureza,
torneado alegremente pelo ar,
dono completo do seu duplo prazer;
entra, vibra assobiando, fala, ri,
canta... E amplia com seu canto
a hora parada da estação viva
e faz nossa vida suficiente.

Eternidade, hora ampliada,
paraíso de fulgor único, aberto
a todos nós, adultos, pensativos,
por um ser diminuto que se amplia!
Primavera, absoluta Primavera,
quando o melro exemplar, uma manhã,
enlouquece de amor entre a verdura!

(de Antologia Poética, selecção, tradução prólogo e notas de José Bento, Relógio d'Água, 1992 - o original pertence a La estación total, de 1946)

3.10.03

Suportamos o caminho de casa,
as largas travessas até ao
lugar escondido das velhas ruínas.