JOSÉ BLANC DE PORTUGALNasceu em Lisboa, em 1914.
Foi meteorologista, adido cultural no Rio de Janeiro, vice-presidente do Instituto de Cultura e Língua Portuguesa.
Escreveu regularmente e para várias publicações, sobre música, literatura e arte.
Morreu em 2000.
InvocaçãoEspírito nocturno que um dia me tocaste
E em alto trono transformaste a flébil haste
Num simples gesto mágico pressabido
Que me erguia dos outros no olvido -
Ó nume - trasgo que teus dedos agitaste
E deles fizeste luminosos astros como fundo
Novo céu de nascimento que formaste
Máquinas simulando de um novo mundo
Musa-deus enganador esquecido:
Voltai de novo aos orcos que deixaste
Deixai-me só como me encontraste
- O tempo chega pra lembrança vossa:
O mal de criar de que fui f?rido
Bastará na obra secreta que eu possa.
Soneto MarteladoA tarde, e por de mais calma,
Afogou-me o que ficara da partida
Tudo me inventara, essa mentira querida
Que ficara fazendo as vezes da alma.
Passa e segue a triste gente calada
E o correio e a luz quebrada no muro
Trazem a tarde, recortando duro
O perfil triste e morno desta minha estrada
E choca e vem de mim até ao céu polido
Sobre mim e a rua desolada,
Uma ilusão que nada tem de alada
E é feita de aço puro e diamantes:
Não querer tornar-me no que era dantes.
(de
Parva Naturalia, 1960)
SapiênciaSaber diéreses, ictos, anacruzas,
E os segredos
Dum cólon trocaico dímetro coluro
E as imanentes transcendências
Do hipercatalético anapéstico monómetro,
Saber que pseudo-sáfico é afinal jâmbico,
Não me fizeram o verso brando ou duro
Nem sequer, por sabê-lo, mais abstrusas
Ficaram as ideias destes versos estranhos
Quando saem de mim sem que os domine
Mais que no guiar da mão dormente.
Siabul, Librabis e Jazer
A meu serviço fossem por saber
A palavra, o sinal que os encadeiam,
Nenhum me daria o poder de escrever isto,
De me rasgar, abrir, horrorizar-me
E atirar ao mundo outra ciência:
Estes versos de que fui um molde apenas
Que são livres já pois neles habita
A sombra da verdade que me basta
Gerada pela Luz que não posso ver toda.
(de
O Espaço Prometido, 1960 - este poema pertence à sequência
Os Dons do Espírito Santo)
ProsaicaSe um dia vier a ser
- Tudo é bem possível,
Ou, melhor, o que é provável
Muito mais do que possível,
Entendamo-nos noèticamente -
Se um dia vier a ser - ia dizendo -
A
besta apropriada para ter assento
Em um (ou mais) Conselhos de Administração,
Faço o propósito solene de assinar
Toda e qualquer lista de subscrição
Mesmo que caridosamente apenas
Político-literárias, de candidaturas...
O intuito óbvio podia ser;
Mas não é:
Quererei mostrar apenas que, por cá,
Ser uma
besta é menos que insultuoso:
Taxonomiza apenas, cientificamente,
O que ainda não é só mineral,
O
calhau, do qual e aliás
Se aproxima insensilvelmente.
(Que possua real vida ou não
è objecto de outra dissertação
mas, para a besta, que isso seja vida
é a consabida incerta sensação.)
(de
Odes Pedestres, 1965)