29.7.07

[Ah, este homem procura as cores mais secas do nosso entendimento]


RUY BELO

OH AS CASAS AS CASAS AS CASAS


Oh as casas as casas as casas
as casas nascem vivem e morrem
Enquanto vivas distinguem-se umas das outras
distinguem-se designadamente pelo cheiro
variam até de sala pra sala
As casas que eu fazia em pequeno
onde estarei eu hoje em pequeno?
Onde estarei aliás eu dos versos daqui a pouco?
Terei eu casa onde reter tudo isto
ou serei sempre somente esta instabilidade?
As casas essas parecem estáveis
mas são tão frágeis as pobres casas
Oh as casas as casas as casas
mudas testemunhas da vida
elas morrem não só ao ser demolidas
elas morrem com a morte das pessoas
As casas de fora olham-nos pelas janelas
Não sabem nada de casas os construtores
os senhorios os procuradores
Os ricos vivem nos seus palácios
mas a casa dos pobres é todo o mundo
os pobres sim têm o conhecimento das casas
os pobres esses conhecem tudo
Eu amei as casas os recantos das casas
Visitei casas apalpei casas
Só as casas explicam que exista
uma palavra como intimidade
Sem casas não haveria ruas
as ruas onde passamos pelos outros
mas passamos principalmente por nós
Na casa nasci e hei-de morrer
na casa sofri convivi amei
na casa atravessei as estações
respirei – ó vida simples problema de respiração
Oh as casas as casas as casas

(de Homem de Palavra[s], 1969)


[Casa onde Nasceu Ruy Belo, São João da Ribeira / Rio Maior - 28 de Julho de 2007]


AMADEU BAPTISTA

ROYAL LABEL BLACK


(a Ruy Belo)

Este homem procura as cores mais secas do nosso entendimento;
vai connosco até à rua; responde-nos
um cigarro primeiro, uma construção na areia, depois um ferro
a espetar nas dunas e no mar
enquanto o mar houver e a paz durar;
come connosco à nossa própria mesa; ama a nossa mulher
e experimenta o odor da nossa casa aonde os nossos filhos
lhe entram pelos joelhos, o cobrem de carícias, lhe atiram
a satisfeitíssima bola de brincarmos aos adultos quando é tarde
ou os dias apresentam um cariz de pouca chuva.

Divide o nosso frango, a frugal fruta, as sobras do almoço
e sai-nos portas dentro quando o pôr-do-sol, a solução do sol, o sol
das terras de portugal e das noites de madrid
dialoga connosco, connosco estabelece a nítida fronteira
entre aeroportos, casas - oh as casas - e a mulher que,
podendo ser a de um estivador, do camisola amarela, desse
irreverente basquetebolista que por um grande azar não é das nossas relações,
foi, é, será sempre a mulher
encontrada e perdida na poeira, nas arcas, nas infâncias multicoloridas
que parcimoniosamente nos excedem.

Procura, sim, procura as cores do nosso entendimento;
bebe do nosso vinho; vai à missa connosco; veste-nos
a pele de lobos esfaimados nesta selva de ratos onde os ratos
se confundem com navalhas, intelectuais empalhados, inquiridores
por conta d'outrem (e própria), só para que o amor
um pouco sobreviva, exíguo e tenso; ri
às bandeiras despregadas como só um menino, como só
alguém que sabe da poda pode rir
enquanto os táxis, o choro, as dores de consciência
- que afinal não há, embora os cais... - atravessam o meio-dia, desesperadamente.

Ah, este homem procura as cores mais secas
do nosso entendimento; limpa-se
às nossas toalhas; chega
ao extremo de utilizar a escova privada da nossa privadíssima higiene; rompe
os nossos sapatos (meias inclusive); joga
à pancada connosco, ao eixo; e rouba-nos a carteira
como só quem sabe sorrir pode roubar-nos, pode
assinar de cruz por nós, solucionar
o problema da nossa talvez habitação
sem prestígio nenhum, ao menos uma praia de consolação em que morrer

com o mesmo à vontade, modéstia e alegria
deste homem que procura,
procura as cores mais secas do nosso entendimento.

(de Green Man & French Horn, in A jovem poesia portuguesa / 2, Limiar, 1985 - colecção Os Olhos e a Memória)

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