Retrato do Beneficiado Faustino das Neves, c. 1670
Igreja de Santa Maria de Óbidos
Igreja de Santa Maria de Óbidos
(reproduzido a partir de Linha do Oeste - Óbidos e Momentos Artísticos Circundantes, coordenação de Benedita Pestana, Assírio & Alvim, 1998 - volume adquirido ao Henrique, na companhia do José do Carmo Francisco)
RUY BELO
O BENEFICIADO FAUSTINO DAS NEVES
Quem seria o beneficiado faustino das neves
que vê de viés quem o visita alguma vez?
Pergunto e não quero que ninguém me responda
perguntar por perguntar pode ser a mais alta forma de saber
A pergunta ondula no ar ou na alma como uma nuvem
será talvez um til num texto uma ruga na testa
um gesto de quem contesta uma leve crispação da crista
Não importa talvez o que se pergunta mas como se pergunta
a ânsia na voz o brilho nos olhos um movimento de pés
Que me importa a mim faustino das neves mero pretexto para isolar
da boca cariada do tempo um simples olhar?
Que importa um olhar a análise dos tecidos orgânicos
dos olhos das células vivas de súbito impressionadas
e das fotografias logo reveladas na câmara escura do cérebro?
Um olhar interroga um olhar duvida talvez um olhar é coisa de tempo
é a mais funda fala de quem num momento se sente bem
se despede de si mesmo de todos se isola cortante como uma proa na vida
Olhar é talvez como que pensar como sentir como dissimular que se sente
e às vezes dar vida a casas costumes coisas ao vento
ao vento que varre todos os gestos que desenhamos nos dias
é lutar corpo a corpo com corpos provisoriamente opostos ao nada
é uma sala de estar onde os amigos podem entrar de chapéu na cabeça
tuna sala onde a luz levanta a manta de velhas coisas inúteis envoltas em volta
Nos olhos começa às vezes o mar os olhos animam nas coisas o vento
nascem nos olhos as nuvens que arrastam consigo a tristeza para o lado sul
Faustino das neves não é homem de anjos
repele discretamente as mãos coercivas do transcendente
joga tudo na vida volta-se de uma vez para sempre para estes dias
emerge da sombra para os mais leves sintomas do sol
sai das mãos de josefa pra uma tela sombria do século dezassete
abandona na ponta dos pés a igreja da santa casa da misericórdia
pisa na noite as pedras da vila de óbidos
Faustino das neves muda de roupa põe o breviário de lado
actualiza certos aspectos antiquados do seu português
submete-se às leis da fonética embora saiba que há quem negue que sejam leis
responde aos inquéritos linguísticos por correspondência do doutor paiva boleo
enriquece o léxico com nomes de coisas do novo mundo com termos técnicos
com construções colhidas nas páginas de aquilino ribeiro ou guimarães rosa
maneja também para isso os modernos meios audio-visuais
anda a par das novas conquistas do estruturalismo evita os vários suplementos literários
embora tenha ouvido falar de fernando luso soares e alberto ferreira
acompanha mesmo as novas correntes do pensamento
Faustino das neves caminha por óbidos mas é um homem do nosso tempo
sensível aos slogans ao chamamento luminoso das montras
recorre ao crédito contribui irresistivelmente para a inflação
que um governo em guerra prometeu combater não sabe bem como
não tem precisão de emigrar mas intervém nos problemas do nosso tempo
assina o seu nome em listas apresenta-se como intelectual responsável
é até dos homens mais à esquerda do nosso país
pensa talvez promover ortodoxamente em portugal
exactamente a revolução russa de mil novecentos e dezassete
Faustino das neves olha através dos séculos
coloca o pé pisa as pedras as nuvens com elegância
conspira diz mal calcula caminha na vida
O beneficiado não crê na promessa do dia nem na verde alegria
de banhar o rosto num instante na própria fonte
de ver sequer de passagem mais que a sua simples imagem
esse núcleo de luz ardente que agora tenho na minha frente
essa fuga feliz a um mundo onde dia a dia me afundo
talvez a única sombra que a mim me deslumbra
sonhada morada nunca conseguida
sensível e audível e palpável mas inconcebível
desmedido portal onde poderá começar o ignoto mundo do mal
onde uma coisa logo que nomeada é coisa realizada
Josefa foi a submissa foi decerto a pintora mas foi também
doméstica e simples e amiga e mãe
Josefa de óbidos não pinta há muito anda assustada
o seu cliente beneficiado fugiu-lhe ingratamente das mãos
não a respeita não reconhece que só graças a ela chegou até hoje
e a pintora tem o seu nome uma reputação nacional e até
internacional devida talvez a josé augusto frança
começa a recear as consequências de ter criado tal criatura
Josefa de óbidos ficou no seu tempo pintou metafisicamente um olhar
meteu-o na cara de um homem enquadrou esse homem numa classe
ficou descansada tinha a imortalidade assegurada
mas agora até pensa deixar talvez de pintar
Josefa de óbidos noutro país talvez tivesse pintado
essas bolas de sabão que manet continua a soprar até nós de um longínquo verão
como imagem do tempo da vida da terra em breve desaparecida
ou aquele menino togado mas truncado
que jaz no prado irremediavelmente ameaçado
pelo perene fado essa mensagem do passado
transmitida ao presente eternamente
ou aquela dama romana donde intermitentemente mana
o mar de recordar esse insistente soluçar
de quem tem no olhar uma forma garantida de passar
a vida indiferentemente recordada esquecida
mais tarde também josefa se fosse um homem
ou enfim defendesse a liberdade sexual da mulher
talvez decerto com a sua dose de sorte se chamasse goya
assistisse a touradas pusesse saber e sabor em pintar aquele picador
que pica um touro castigado nalgum domingo do século passado
ou se não mais na sua linha um cardeal de goya frio fixo como uma jóia
que um homem depois de ver de boamente consente em morrer
ou as perfeitas santas justa e rufina onde se afina e refina
a mão que por vezes guia a loucura através do pretexto da pintura
Mão que não sentiu a pouco e pouco gastar os dedos do autor a pintar
que pintou noite e dia sem sentir que se desfazia
para para sempre ficar num grupo álacre que a dançar
envolve na roda a distância do requinte e da elegância
de quem num instante ímpar se desenha no ar
para tudo e todos imolar ou pelo menos diminuir
Josefa não pode parar talvez quem saiba consiga pintar
a maja desnuda ou a maja vestida
os velhos vorazes que no comer põem a mais viva forma de morrer
essa romaria de santo isidro onde há gente que deve os olhos de vidro
ao vinho e à mais triste alegria que num madrid há muito passado se construía
ou o cão já meio afogado só salvo depois de pintado
com a raiva de quem assassinasse talvez a própria mãe
ou a si mesmo se houvesse matado ao deixar-se auto-retratado
A pintora de óbidos desconhece a finura o donaire o sorriso dessa figura
helena fourment modelo de rubens uma criatura da terra que até hoje perdura
não viu uma velha de duas igrejas fiar e de fuso na mão para sempre ficar
com o tempo todo na face mãos fechadas sobre a velhice
ou a usurária de ribera mulher que é hoje na tela mais que no tempo era
mulher mumificada na mão levemente destacada
território de rugas talvez onde se intensifica a luz
rosto rijo e rigoroso onde o boletim meteorológico anuncia sempre tempo invernoso
olhos que no campo circunscrito da parecença
distinguem a distância que existe entre quem começa
e quem a vida já vela com um véu de névoa
Josefa pinta como quem pensa ou considera e só assim recupera
esse passado mais que no nome na realidade inexoravelmente passado
por ser a mesma mulher e serem freiras e serem viúvas ou outras quaisquer
ou esse santo por heredia pintado e depois disso irremediavelmente degolado
e não menos que o anterior cão deixado nas águas do tempo afogado
Josefa na arte comprometida passaria o pincel pela vida
pelo baile campestre alegre e triste
onde é visível o vento que apenas dura nesse momento
em que se dança intensamente e alguém vai e vence
com a decisão inabalável das marés do mar o bailarino mais exímio a dançar
casamento campestre conjunto de gestos urbanos num meio agreste
neptuno do olhar velado neste mesmo instante emerso do mar do passado
objecto de gesto jamais talvez ultrapassado apesar do desígnio sempre esboçado
por quem um dia nalguma parte deu o que tinha e não tinha pela arte
Josefa de óbidos assustou-se porém pois podiam dizer a alguém
que pintar implica ao fim e ao cabo ter um pacto com o diabo
pois o diabo vivia nos dias de então vestia a toga da inquisição
e a pintora pensou deixar a pintura com medo da alma e da censura
Não existe decerto censura mas o gesto foi sábio porquanto existe o exame prévio
e se formos a pensar um bocado é realmente perigoso pintar um beneficiado
pois bem vistas as coisas o homem às vezes é vário muda de roupa deixa o breviário
sopram os ventos da história e modificam a forma de toda a matéria
e talvez tenha sido assim que faustino se pôs a pensar josefa que foste tu fazer
(de Toda a Terra, 1976)
Sem comentários:
Enviar um comentário