1.5.10

ANTÓNIO ALÇADA BAPTISTA

Aquilo a que, normalmente, chamam «o trabalho» é, do mesmo modo, uma palavra equívoca que contém, simultaneamente, coisas preciosas e degradantes. Os bem pensantes da direita e da esquerda, e muitos outros especialistas na arte de degradar, à mínima atrapalhação atiram com o trabalho para a frente como palavra-mito, sem distinguir, por conveniência ou incapacidade, as coisas boas e más que ela interiormente contém.
O facto é que uma geral pedagogia aceite e apregoada por todos, nomeadamente pelos que nada fazem, insiste no trabalho como o grande e nobilitante motivo que redime e justifica o pedaço da nossa existência. Qualquer manualzinho de ética escolar dizia, à primeira oportunidade, que o trabalho «é força, é saúde, é vigor». A minha selecta de francês, pródiga em textos fàceizinhos de ler, consagrava ao trabalho pesada cópia de poesia e prosa e, daquela, uma terminava assim:
«une seule avarice bonne,
c'est l'avarice de son temps».
Por outro lado, há que constatar, sem parcialidade, que o próprio adagiário popular dedica ao trabalho muito mais conselhos do que os que refere ao capital:
«Semeia e fia, terás alegria».
«Não deixes para amanhã o que podes fazer hoje».
«A ociosidade é a mãe de todos os vícios».
Quero desde já prevenir que este problema para mim não é simples. Preocupa-me o tempo perdido e o gaspillage quotidiano da energia do homem, mas tenho que reconhecer que a humanidade tem sido vítima de «trabalhadores incansáveis», da praga incontida dos «escravos do dever» e que, por outro lado, passagens serenas de ociosos boémios suavizaram o mundo do peso da sua geral servidão.
Entre as muitas feias acusações com que se tem difamado a sociedade capitalista está a de que «nela, uma minoria ociosa usufrui do trabalho duma maioria oprimida», necessariamente trabalhadora. Marx escreveu até sobre esse assunto um livro tão grande que os trabalhadores nunca o puderam ler. As considerações aí feitas foram muito proveitosas para a dinamização do processo histórico mas não ajudaram grande coisa no aspecto que agora me preocupa. Outrossim fui levado a verificar:

1.° Quanto à sociedade capitalista:
— Na minoria privilegiada há elementos extraordinariamente «trabalhadores» que, com essa «qualidade», asseguram normalmente o processo de exploração da maioria.
— Na maioria explorada há elementos extraordinariamente «ociosos» que, com esse «vício», conseguem, alguns, atenuar a exploração que os oprime.
— Os casos raros de passagem da classe explorada à classe privilegiada vêm exactamente daqueles elementos cuja vida foi «um exemplo constante de acrisolado amor ao trabalho» e que, pela sua ascensão, comprovam a sua crença e a sua devoção ao sistema, razão pela qual, na sua velhice, recebem dos altos poderes altas comendas, do Comércio, da Indústria ou da Agricultura.
2.° Quanto à sociedade socialista:
— Na minoria privilegiada há elementos extraordinariamente «trabalhadores» que, com essa «qualidade», asseguram normalmente o processo de opressão da maioria.
— Na maioria oprimida há elementos extraordinariamente «ociosos» que, com esse «vício», conseguem atenuar a opressão que os explora.
— Os casos raros de passagem da classe oprimida à classe privilegiada vêm exactamente daqueles elementos que, ademais da sua crença devotada ao sistema, tiveram uma vida que foi «um exemplo de trabalho e dedicação», razão pela qual, na sua velhice, lhes são dadas comendas cujo nome me não lembra.

(excerto de Peregrinação Interior I - Reflexões sobre Deus, Moraes editores, 1971)