PEDRO DE ORAÁ
BARAGAÑO ENTRA NO ESPELHO
Enfebrecido pela humidade de uma paisagem mísera de três paredes,
entra na água do espelho sobre a bacia amarelenta,
água cujas reminiscências apagam rostos tão lúcidos
como o seu muitas tardes no porto ou nos alfarrabistas:
aí costumava fazer ironia e sorrir, aí recordava
o terceto de Quevedo e a cidade ilusória,
o flutuar da sua sombra e a sagacidade de Artaud,
ali tirava o sobretudo preto do seu triste coração
Estou certo de que o seu coração clamava aos gritos
contra a postura sardónica, contra o nariz peçonhento,
a sua tendência para dar à língua noite adentro,
para amigos inverosímeis e as companhias gastas:
pálido vinha, desolado de ruas exterminadas à chuva,
de escrutar neves espessas à Poesia, sua jactância admirável
ou a sua má língua: quem o tornou assim se não a Poesia,
o seu amor extremista, o seu ódio à mudez?
Queria conhecê-la como ninguém, à Poesia,
levá-la nas roupas, na mão,
como as pequenas moedas que não chegavam para nada,
e sempre que assim fosse, nos precipitavam
sobressaltados aos cafés e aos lupanares.
Então sentíamo-nos maiores e ele era realmente grande:
em Paris vira os pérfidos delírios de Lautréamont,
conversara sobre a infância cinzenta com a governanta
de Milosz, enfim, ia a Paris para a explorar.
E um dia, entre tolos os dias implacável, instaurou a sua manhã
diferente de teor e humor: voltou transfigurado
das neves, pôs-nos sobre o ombro o seu nome confesso,
José Álvarez. Mas todos regressávamos de obstinados crepúsculos,
de ruas nuas, de amarguras, de pratos frios.
Decidiu, connosco, defender o raio de sol na parede raspada.
Agora, a mão cheia de poesia tem a expressão mais lenta, arranja a gravata:
Baragaño contempla o queixo vaidoso e entra no espelho.
(de Poesia Cubana da Revolução, tradução de Manuel de Seabra, editorial Futura, 1975)
7.5.10
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