24.8.10

[recuperando séries antigas - cebolas e Prémio Nobel]

HAROLD PINTER

[...]

- Que é que tens aqui? - perguntou Len, abrindo o armário. Tens alguns pickles? Sabes o que eu fiz no outro dia? Mostrei a um gajo que trabalha comigo, um estudante de Oxford, um dos teus poemas. Tínhamos estado à espera do Irish Mail e recebemos cada um uma gorjeta. E então mostrei-lhe um dos teus poemas.
- O que é que ele achou? - perguntou Mark.
- Olhou para o relógio. Disse que era melhor atravessarmos para a linha sete. O problema com este tipo de pessoas é que quando lêem um poema nunca abrem a porta e entram. Contentam-se em inclinar-se e espreitar pela fechadura. Não fazem mais nada.
- São as pessoas inteligentes - disse Mark.
- Pois. Também vi as coisas deles. E lúcido, está bem. Ninguém o nega. Mas quando se quer palpar a qualidade, não há ali nada. Pegas naquilo como num pedaço de pano e vê-se através dele.
Não consigo falar com essa gente. Como podia dizer àquele gajo que uma frase no teu poema não era em inglês, mas em chinês. É chinês. Aquela frase é chinês. Como lhe ia dizer isso?
- Que frase?
- Não interessa. Agora não me lembro.
Beberam.
- O problema - disse Len - é que não consigo seguir as referências deles. Sou um estrangeiro. Estás a ver, a minha reacção à poesia é como aquelas velhas a comer cebolas e a fazer tricot enquanto a guilhotina cai. É o que é. Que queres dizer? Não gosto da palavra estilo. Não sei o que significa. Não gosto da palavra estilo nem gosto da palavra função.
- Esta gente - disse Mark - quer que tudo encaixe na grelha de palavras cruzadas deles e não gostam quando alguma peça não encaixa, é tudo. Que vão para o diabo. As cabeças deles são como retretes de quintal, mesmo que a merda deles saia embrulhada em seda e cetim.
Pegou numa beata do cinzeiro e agitou-a no ar.
- É isto que vale esse tipo de gente.
- Disso, não percebo nada.
- De que vale reprimir o nosso descontentamento? - disse Mark. - Tens de estar preparado para condenar e desprezar, Len. É assim que se limpam os pratos.
- Não acredito.
- Bem, como vai esse negócio da poesia? A tua, quero eu dizer.
- Acabou.
- Bancarrota? Nem sequer uns trocos no cofre?
- Sim, mas sem valor. Também mostrei a esse tipo um dos meus poemas. Desde essa altura, nunca mais olhou para mim. Tomou como um insulto pessoal o eu ter-lhe sequer mostrado aquilo. Sabes como é que eu escrevo um poema? Sento-me na sala e ponho-me a olhar para os cantos. Às tantas levanto-me e espremo um limão, sai uma gota de sumo, e aí está o poema. Que valor tem isso?
- Não há regras imutáveis.
- Não.
Mark afastou uma cortina e olhou para a escuridão da noite.
- Sabes o que faz essa gente? - disse Len. - Saltam de palavra em palavra, como se fossem alpondras de vau.
Deu uns passos pela sala, a demonstrar.
- Como alpondras de vau. Mas diz-me uma coisa. Que fazem eles quando chegam a uma linha sem nenhuma palavra? És capaz de me responder? Que fazem eles quando chegam a uma linha sem nenhuma palavra? Podes-me dizer?
Mark acabou de beber a cerveja.
- Quanto a ti - disse Len - vou-te dizer o que tu fazes quando escreves um poema. Carregas no botão B e recebes o teu dinheiro de volta.

(excerto de Os Anões, tradução de José Lima, publicações Dom Quixote, 2006 - Ficção Universal)

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