29.5.11

[no 30º aniversário de uma antologia]

ANTÓNIO CAMPOS


LOUVOR DE IRENE LISBOA, POR UNS VERSOS LIDOS NUMA ANTOLOGIA


Descuidados vamos, por um caminho
que debrua as hortas, divide os comoros onde
crescem giestas, madressilvas,
vamos, rentes ao dorso dum riacho
alastrado de caniços, de filamentos que
reverberam o azulado dos óleos,
o brilho dos calcários, o lixo das indústrias.
Florescem as acácias
nas passadas manhãs de Março,
pelas fendas os frios murcham
os rebentos dos goivos, a delicada trama das avencas,
uma sombra lenta aviva manchas cálidas
no musgo ainda húmido dos muros.
Sabes bem que a idílica paz, o sussurro
das finas hastes dos juncos é
um cenário mutável gravado em
trompe-l'oeil no verso destas tardes.
Mudaste o vaso de begónias,
um fino rasto de poeira
abre-se na folha polida da mesa,
o arrumo das coisas, o lugar morno
que lhes damos convida à lassidão.
Vês da janela um carro que desce a rua
a essa hora deserta,
uma luz crua, cruel, tinge
os prédios a perder de vista, desgasta os contornos,
o exausto fulgor dos néons anuncia a manhã.
Um homem sem fortuna, com um nome futuro,
atravessa as avenidas, molha-se da chuva fina
que se volve névoa suja ao tocar o asfalto,
abre com os dentes um sobrescrito,
abre-se à sua volta um círculo de silêncio
feito de acres memórias,
de reprimidas lágrimas de raiva,
de tensos ecos de paz.
A aurora raia nas vidraças,
lembra-se de quem o espera num quieto banco de jardim.
A cidade fervilha, devora-o.


(in Os Poetas do Café, no Café Diplomata, 1981)

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