7.4.04

MARIA VITORIA ATENCIA

A NOITE


Pode a lua cegar-nos, ela que em nosso leito
nos convoca, nos fere fatalmente ou cativa,
fiéis a seu intento de um sono desvelado.
Abre-se a noite. Dura. A trepadeira é cúmplice.
Cai ao chão a roupa ínima. Porém, idêntica
aurora há-de velar-nos ou ser glória nossa.

(tradução de José Bento)
Por via da Cláudia, tomo conhecimento de uma das poucas notícias de jornal que me poderiam deixar maravilhado.
Em Quarta-Feira Santa, pré-aviso de blog.

6.4.04

ANTÓNIO BARAHONA

PRIMEIRO MISTÉRIO DOLOROSO / A AGONIA DE CRISTO NO JARDIM DAS OLIVEIRAS

Que não resulte inútil e nos salve
este suor de sangue, gota a gota,
derramado na nossa face humana
pla Santa Face prosternada em prece

Que não resulte inútil: seja prática
a memória do sangue, que nos move
a rezar solidários por quem sofre
na infinita solidão sem sombra

Que não resulte inútil, que não durma
nenhum de nós: fiquemos de vigia:
a vida é curta pra tão longa hora!

Que não resulte inútil, que se cumpra
a promessa de Deus à Sua Igreja,
que continua Cristo em agonia

(de Rosas Brancas e Vermelhas para um rosário jubilar, edições Paulinas e Ajuda à Igreja que Sofre, 2000 - colecção Celebrar)
JOSÉ BLANC DE PORTUGAL

O deserto é imenso e errado
mas sua desolada vastidão
não chega para contar as penas todas
não as minhas queixas mesquinhas
de que um oásis saciaria o acre ardor
mas as dos que me rodeiam e a quem
apenas posso dar o meu querer bem.

11.IV.90

(de Quaresma Abreviada, Black Sun editores, 1997 - the impossible papers)

5.4.04

VITORINO NEMÉSIO

PRECE


Meu Deus, aqui me tens aflito e retirado,
Como quem deixa à porta o saco para o pão.
Enche-o do que quiseres. Estou firme e preparado.
O que for, assim seja, à tua mão.
Tua vontade se faça, a minha mão.

Senhor, abre ainda mais meu lado ardente,
Do flanco de teu Filho copiado.
Corre água, tempo e pus no sangue quente:
Outro bem não me é dado.
Tudo e sempre assim seja,
E não o que a alma tíbia só deseja.

Se te pedir piedade, dá-me lume a comer,
Que com pontas de fogo o podre se adormenta.
O teu perdão de Pai ainda não pode ser,
Mas lembre-te que é fraca a alma que aguenta:
Se é possível, desvia o fel do vaso:
Se não é, beberei. Não faças caso.

(de O Verbo e a Morte, 1959)

4.4.04

AMADEU BAPTISTA

ENTRADA EM JERUSALÉM


Eu vi o sacrifício e o boi que chora,
e a pomba degolada na fogueira. Vi o cordeiro
imolado nas chamas e a cidade
ainda erecta, pedra sobre pedra.
Eu vi o que jamais
foi visto alguma vez,
Jerusalém, o céu e o deserto,
e o soluço imenso sobre o mundo
enquanto o fogo invadia tudo.
Vi a casa de Deus abandonada
e a salvação dos mortos maculada
pela eterna ausência que o espírito
chamou a esta torpe sedição.
Eu vi o sol e a treva que redime,
e a mágoa do esconjuro que persigo.

(de Paixão, edições Afrontamento, 2003)

3.4.04

GUILHERME d'OLIVEIRA MARTINS

(...) O "melhor dos mundos possíveis" de Leibnitz obriga a procurar entender a dialéctica entre a possibilidade e a utopia. Não se trata de nos acomodarmos ou de nos conformarmos com uma ordem imperfeita ou desumana, mas de partirmos das condições concretas para podermos ultrapassar as meras boas intenções de que o inferno está cheio. Temos de encontrar causas mobilizadoras capazes de nos levarem à superação da indiferença e da acomodação, do egoísmo e do conformismo. Mas, como afirmava Hans Urs von Balthasar: "não é o saber absoluto, mas o amor absoluto que engloba os adversários". A compreensão mútua exige, assim, um suplemento de alma, um sentido crítico e a capacidade de entender as fronteiras sociais e humanas como pontos de encontro e de enriquecimento comum.

(excerto do artigo A cidadania como serviço, publicado no Jornal de Letras de 31 de Março de 2004)

2.4.04

[SONETOS À SEXTA-FEIRA]

LUIS DE GONGÓRA

De una dama que, quitándose una sortija, se picó con un alfiler


Prisión del nácar era articulado
(de mi firmeza un émulo luciente)
un dïamante, ingenïosamente
en oro también él aprisionado.

Clori, pues, que su dedo apremïado
de metal, aun precioso, no consiente,
gallarda un día, sobre impacïente,
lo redimió del vínculo dorado.

Mas, ay, que insidïoso latón breve
en los cristales de su bella mano
sacrílego divina sangre bebe:

púrpura ilustró menos indïano
marfil; invidïosa, sobre nieve
claveles deshojó la Aurora en vano.

[1620]


SOBRE UMA DAMA QUE, AO TIRAR UM ANEL, SE PICOU NUM ALFINETE

Grilhão do nácar era articulado,
de eu ser tão firme imitador luzente,
um diamante, engenhosamente
em ouro também ele encarcerado.

Clóris, porém, que seu dedo apertado
por metal mesmo raro não consente,
briosa um dia, além de impaciente,
resgatou-o do vínculo dourado.

Mas, ai, um insidioso latão breve
nesses cristais de sua bela mão
sacrílego, divino sangue bebe:

púrpura não pôs tanta ilustração
no marfim; e, invejosa, sobre neve
cravos desfolhou a Aurora em vão.


De un caminante enfermo que se enamoró donde fue hospedado

Descaminado, enfermo, peregrino,
en tenebrosa noche, con pie incierto
la confusión pisando del desierto,
voces en vano dio, pasos sin tino.

Repetido latir, si no vecino,
distinto, oyó de can siempre despierto,
y en pastoral albergue mal cubierto,
piedad halló, si no halló camino.

Salió el Sol, y entre armiños escondida,
soñolienta beldad con dulce saña
salteó al no bien sano pasajero.

Pagará el hospedaje con la vida;
más le valiera errar en la montaña
que morir de la suerte que yo muero.

[1594]


SOBRE UM CAMINHANTE DOENTE QUE SE ENAMOROU ONDE FOI HOSPEDADO

Transviado, enfermos, peregrino
em tenebrosa noite, o pé incerto
a confusão pisando do deserto,
em vão gritou e caminhou sem tino.

Um ladrar repetido, não vizinho,
claramente ouviu de um cão desperto,
e em pastoril albergue mal coberto
a piedade achou mas não caminho.

Veio o Sol, em arminhos escondida
sonolenta beldade em doce sanha
o malsão passageiro acometeu.

A hospedagem pagará co'a vida;
mais lhe valerá errar pela montanha,
do que morrer da mesma sorte que eu.


Inscripción para el sepulcro de Domínico Greco

Esta en forma elegante, oh peregrino,
de pórfido luciente dura llave,
el pincel niega al mundo más süave,
que dio espíritu a leño, vida a lino.

Su nombre, aún de mayor aliento dino
que en los clarines de la Fama cabe,
el campo ilustra de ese mármol grave;
venéralo y prosigue tu camino.

Yace el Griego. Heredó Naturaleza
Arte; y el Arte, estudio. Iris, colores.
Febo, luces (si no sombras, Morfeo).

Tanta urna, a pesar de su dureza,
lágrimas beba, y cuantos suda olores
corteza funeral de árbol sabeo.

[1614]


INSCRIÇÃO PARA O SEPULCRO DE EL GRECO

Em esta forma elegante, oh peregrino,
de pórfiro luzente dura chave,
o pincel nega ao mundo mais suave,
que deu espír'to ao lenho, vida ao linho.

Pra seu nome é alento inda mesquinho
tudo o que nos clarins da Fama cabe;
o campo ilustra desse mármore grave.
Venera-o e prossegue o teu caminho.

Jaz o Grego. Herdou a Natureza
Arte; e a Arte, estudo; Íris, cores;
Febo, luzes; se não sombras, Morfeu.

Tanta una, mesmo com sua dureza,
lágrimas beba, e quantos sua olores
fúnebre casca do tronco sabeu.


Cosas, Celalba mía, he visto extrañas:
cascarse nubes, desbocarse vientos,
altas torres besar sus fundamentos,
y vomitar la tierra sus entrañas;

duras puentes romper, cual tiernas cañas,
arroyos prodigiosos, ríos violentos,
mal vadeados de los pensamientos,
y enfrenados peor de las montañas;

los días de Noé, gentes subidas
en los más altos pinos levantados,
en las robustas hayas más crecidas.

Pastores, perros, chozas y ganados
sobre las aguas vi, sin forma y vidas,
y nada temí más que mis cuidados.

[1596]


Coisas, Celalba, tenho visto estranhas:
rasgar-se nuvens, desfrear-se ventos,
altas torres beijar seus fundamentos
e a terra vomitar suas entranhas;

duras pontes quebrar, qual tenras canas;
regatos raros, rios violentos,
mal vadeados pelos pensamentos
e travados pior pelas montanhas;

nos dias de Noé, gentes subidas
nos mais altos pinheiros levantados,
nas robustas faias mais crescidas.

Pastores, cães, choupanas, muitos gados
vi sobre as águas, já sem forma e vidas,
e nada temi mais que meus cuidados.

(traduções de José Bento)

1.4.04

LUCIANO
(125-190)

Já que não tinha nada de verídico para narrar..., virei-me para a mentira, mas uma mentira mais desculpável do que a daqueles [os autores de ficção], porquanto numa coisa serei eu verdadeiro: ao confessar que minto. Desta forma, isto é, declarando que não digo nem um pingo de verdade, creio ficar absolvido da acusação que porventura me façam. Escrevo, pois, sobre coisas que não testemunhei nem experimentei, e que não soube da boca doutrem; mais ainda: que não existem em absoluto e que, de qualquer forma, não são susceptíveis de ocorrer. Portanto não deve o leitor dar o mínimo crédito às minhas histórias.

(do Prólogo de Uma História Verídica, prefácio, tradução e notas de Custódio Magueijo, editorial Inquérito, s/d - edição bilíngue)
A grande verdade que me fica deste dia é a voz de Elis Regina cantando a rir.