9.8.07

[Havemos de ser úteis como mortos há muito]



JOÃO VÁRIO
Pseudónimo de João Manuel Varela, que utilizou também os pseudónimos Timóteo Tio Tiofe e G. T. Didial. Nasceu em 1937, no Mindelo, em Cabo Verde.
Uma síntese da sua Vida e Obra pode ser encontrada aqui.
Morreu na madrugada de ontem, na sua cidade natal.


CANTO TERCEIRO

E assim rodamos de objecto em objecto
Como seres concebidos no alto inverno,
Tal o círculo das coisas e as coisas do seu tempo,
Porque um homem pode matar-se,
E, se nos matamos, porque seres
Concebidos no alto inverno,
Sem a farinha deste ano e esta pausa aguda
(Oh tal lassidão, o decúbito, a ansiedade!),
Podemos ceder ao tempo e seu tempo o tremor
E a vaidade que não exigem de objecto
Em objecto, qual tempo que não exige
Esse giro fulminante e essa pausa aguda,
Tal, se nos matamos, há tal coisa de verão
Para citar e criamos mais depressa
E cedo rodamos de objecto em objecto
E não o negam os que vêm no verão.
Que vos dizíamos nós?
Nessa altura da vida
Tivemos medo à sabedoria.
(Sob seu sumário prestígio, a alma, lembrança
E ela, decide
Sua necessidade de privilégio, de fruta e algo
Que omitimos.
E não saberemos que é impossível, impossível.
Ao movimento narrado de ter a vida,
Somos sem deuses, e vagos.
Oh o que amáramos
Não fosse a unidade
A que a alma nos força!
A noção, à mão, o cânone, à porta,
E o valor do rosto quando dorme:
Facto, ode ou cárie
Que comemoram a longevidade).
E eis que as casas se enchem dos ossos
Que perdemos, medindo a terra
Com os crânios que a vida perde porque é outra,
E o repouso das paredes que vão cegando
Crânio e terra, família e ambos. Tal os
Ossos arrefecem sem a chuva, como ela,
E as terra que os cobre nos cobre menos
Ou abre do nosso lado outra terra vizinha
Da terra que vamos dando com os ossos,
A chuva, o cobri-la hoje, terra
Ou chuva que outra coisa não cobriu, ontem.
Quando morríamos, ou cobre hoje, quando
O suicídio nos acode
E arrefecemos com ela, diz-se,
E outra vítima em nós, assim e alheia.
E em toda a parte a urna é a mesma,
E a língua que enche o túmulo
É o tumulto que persegue as crianças
Sobre a terra dos pais, a pá maior e a loucura
Tal espera outras trevas para a profecia,
O dogma, o granizo que desabam sobre o soro
Dos rostos, pasmos óbvios sem o horror dos discípulos,
A versão de seu deus e nossa inocência de adultos,
Adobe ou adubo que a boca arrasta
Na saliva para a hóstia povoada
Que não o tempo, mas seu tempo,
Doeu ou deu no peito largo, chão,
Não cristão, que bebe e morde
Da água desta celha, veste desta roupa na corda
E esfrega a terra deste mundo
Sobre seu corpo de pobre, como óleo,
(Só quando imutáveis mortos nos legássemos,
Nos não aterre essa capitulação
Que amamos proibir. Com efeito,
O que blasfemamos é inominado. Entanto,
Se de símbolos, e lúgubres,
Os pactos tecemos com a alma,
Tê-la é tão só a dimensão sua
E alheá-la, reduzida).
E tudo que a nós, presságio,
Pasmos, perdulário instinto,
Regressa,
Circunscreve-nos à tradição
Aleatória
De em pura fatalidade concluir a alma.

(Eis a vítima, nosso saco de gâmetas e de enzimas,
Com agosto arrastando vidro e pedra,
Coentro e alho pelas portas dos vivos,
Tal cadáver ou mó desta ternura
Com que outrora arávamos sua estéril vida
De mês nosso estéril mês de vida, às portas das vítimas,
Tal a profissão menor, as gengivas
E as jovens da cidade falando de Plotino).

Para a culpa que em nós se inconstitui
Absolve-nos, legando-nos
A desespero menos fortuito
Que exaustão ou remorso. Contudo,
Nem de tão sepultos
Nos logramos menos vulneráveis.
O falso alarme, o lucro, a ofensa,
O opróbrio, a tolerância, a escolha,
Pecadores apenas e tal como pecadores,
Coisas que repetíramos, coisas que ficaram,
Coisas de ostentação e de verbo alto,
Coisas do humor, da páscoa, públicas coisas,
E coisas de primavera transacta, de semana santa,
Coisas porque nos matamos ao pedido do óbulo,
E coisa de redacção privada.
Qual vantagem ou cumplicidade ou acordo póstumo,
À entrada da ilha, no principio da igreja, à hora
De sair com os utensílios para a prece,
Para a preguiça, para a carícia e para a gratidão
Na revolta e no massacre reflectimos,
A vantagem, a cumplicidade, o hábito, olvidados
Ou amando os únicos rostos, indigência como fruto
Que ao seu sentido coube, tal
A luxúria, a nudez, o vexame, a volúpia,
O habito, o tédio, a monotonia, a inveja,
O tédio, o mau humor, o hábito, o tédio,
A vontade de viver e o temor de morrer,
E a vantagem, a cumplicidade e o acordo póstumo. Tal
O vício é um novo presente para os crimes nossos
E sob a alegoria da tarde e a amizade do meio-dia,
Impetuosíssimos, discorremos sobre a família,
As horas de sono e os meses de gestação
E de trabalho árduo, tal sua paz,
Paz certa, paz outra, paz amplíssima e paz grande.

Trata-se do ócio, da diferença, do baptismo, ó homens.

(Tudo chegou com o engano, a data do parto,
A primeira fome, o engano,
A data do parto é um mais triste coito).

Pagãos votivos e, de votivos, concussos,
O que restituímos de conclusão e apocalipse
Não assimila na razão e no desígnio
A desfigura que nos sobrevive - crime
Ou tutela do pão que a reminiscência promove.
Pois que o tempo que nos traímos
Não supõe corpos supérfluos,
O conhecimento é a só mesma dor
Com que nosso próprio abandono confundimos.
Sabemos, pois, que o que falta é um pouco de utilidade.
A réplica, o inverno imediato, a escuridão alta
E os primeiros surtos do favor, os meses e os anos
De setembro brusco, e as últimas mesas e o vinho
Chegando com a estupefacção, a impotência,
E a réplica, o inverno imediato e a escuridão alta.

Porque de ser modo ou tal tempo ou tal
Celebridade, a vergonha, o desprezo, a falência,
A chave do regresso e a opressão do regresso,
Desde regresso e desde regressar, regressando
(A solidão do outono e a fatalidade do outono,
Outono ou outono, outono sempre,
Outono se assemelhando, outono semelhante,
A solidão de ter e de não ter feito,
Sendo mais nada em nada, ou nada,
E tempo de considerar que morremos),
Porque de ser modo ou tal tempo ou tal
Celebridade, eis que para cima do robusto vaso do sangue
Sangue em si próprio e acima de outro sangue,
Elevamos, a meio do casto outono, a cabeça sonora.
A recusa, o bem da luta, o morto e seu morto.
Tal os mortos nossos, nem sempre
Mortos sempre ou mortos connosco ou com morte
Por que morreram. Tal um pouco são
Da hospitalidade que o corpo inclina para a sombra
Que o usa, ao meio-dia, o gozo, a arma,
E a terra e as varizes que os usam. Mortìssimamente
Mortos.

Pois sem beber é da atenção e do alarme que falamos,
Sem eles bebendo, porque menos bebem,
Ao fundo do diário sangue bebendo, porque há os que menos bebem,
Tal necessidade e fecho ou desnecessidade e desfecho.
E tal é o sangue no fundo do sangue, seu sangue por dois,
Sangue outro que duplo, sangue com advento do sangue,
Ou sangue que esquecemos de beber, bebendo.

Quando junho começa e se fala
De mutilações e de outubro,
O homem o domingo recebe
Como quem mutilações e domingo
Reflecte, pois a alma se lembra de junho,
E está alta, menos alta, através de estar-se lembrando,
Outubro lembrando.

É, pois, um outro soleníssimo inverno. Inverno e sua corda
E cabaz de nos observar com a mão, de nos tomar
Por outra vida, sua vida de inverno e sua
Inverníssima vida, e de inverno,
De inverno ouvindo. E
Homens destes tempos, sem a excelência deles,
Homens precários, lassos, mais,
Enquanto seguíamos, baços, falsos, entre estevas e o século,
De longe seguíamos a mulher aguardando
Seu sexto filho,
O choro, o vento e a venda em seu ventre,
Ventre seguindo de longe, ventre ou ventre, ventre
Sempre, ventre a esmo.

(Por certo, a planta dos pés de um homem
De nada vale neste mundo. Pois
Que são o seu rectângulo de ruído,
Sua tensão de carne, agosto, o camelo
E o fundo da agulha, como se diz?)

Tudo conhecemos agora que o sol cai e é a simples razão de cair
E hesitar connosco. O sol, sem de ser sol tal,
Sol tanto, sol aquele do solo, do solstício, do sono,
Do desenvolvimento, de sol tal.

Ah dignidade! acreditamos valores de abominação
E de dezembro.
Tempo grande e oramos. Aula e beijo,
E ninguém precipita sua sesta de crente,
E sabemos que vamos cumprindo como fidelidade
O que a fidelidade com alta sapiência cumpriria.
E tal é o assunto.

Que preceito, pois, que celeridade ou feitio
Que frio será, homem, tua totalidade?

Não insistimos mais sobre estarmos tristes e morrermos.
A herança, o jogo, o frenesi, o gesto,
O apetite, o negocio, apetite
De destruição e de vantagem,
De continuar e de sobreviver.
Também o triunfo, o prazer, o prazo de morrer
E de ganhar, de acabar e de recomeçar,
E o gozo da obediência. Tal
A paz. Paz e mito numeroso
A mesa desdobrando sobre a notícia, o sarcasmo,
O dolo ao sétimo dia de junho,
Mês da impaciência e de canto triste, mês
Com verão e da sua teoria do verão e do tempo,
Mês velocíssimo.
A jornada, o aniversario, o arrependimento.
Tal o alimento por baixo do alimento,
O alimento acima do alimento. Alimentìssimamente.
Festa e espelho. A recepção
O sucesso, o tempo. Tempo grande.
Tal há os que menos bebem, porque menos bebem, porque menos bebem,
Sem eles bebendo, ou bebendo, tal
Não há imortalidade
E não podemos pagar a reminiscência.
Porque pasmos e hábitos vacilam em nós
O limite e as lembranças.
E enquanto instituímos os signos
E nos louvamos nos mortos imortais,
A alma, génese e ela,
Decide sua necessidade de privilégio, de fruta e algo
Que omitimos. Tal
Memória ou memórias,
Memórias como salário
Ou cântaros de sacrifício,
No signo dos gémeos, ao vigésimo terceiro ano
Do principio do signo,
Humanas razões de censura e audiência,
E o auxilio, o prazo grande, a possibilidade
Porque da morte nos ficou esse dom
De a pensarmos como coisa sua,
Coisa por que a pensamos e acaso não a exprime
Porque a designamos.

Há muito passado no estar aqui com o tempo.
Fim e reconhecimento, e não sofrendo mais do que o tempo concede,
Fim de novo e reconhecimento de novo,
E tudo é crime, ou crime sempre, crime ou crime,
Criminosìssimamente crime,
Quando arriscamos a intensidade, comemorando.
Aumento a festa, ou cilício, e tempo de cair a tempo de seguir,
Tempo de mal cair e tempo de mal seguir,
Oh amamos tanto, amamos tanto estar aqui com o tempo
E sabendo que há nisso pouco passado.
Porque maiores que os desígnios da medida e, divididos
Em dois por eles, com eles indo, se por eles
Ganhamos o tempo, pedimos a forma mais fácil
De indagar que vamos morrer e, um dia, se
O tempo for deles e, a memória, de outros,
Havemos de ser úteis como mortos há muito,
Sem que a causa, o delírio, a designação,
O julgamento nossa medida abandonem,
Dividida em duas por eles, e ganhando constância.

Depois, depois faremos ou fará o tempo, por sua vez,
Aquele blasfemíssimo comentário,
E então consta que amámos.

(de Exemplo Geral, 1966 - in Líricas Portuguesas – quarta série, selecção prefácio e notas de António Ramos Rosa, Portugália editora, 1969)

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