19.6.13

ARMINDO RODRIGUES


AVE NEGRA

Estou vazio e estou triste. Quantos enlevados propósitos tantas vezes pus na crispação destas mãos arremessadas e na nudez desta voz me parecem hoje inatingíveis.

Sei que outros sonham os mesmos sonhos que eu sonhei. Mas hoje estou vazio e estou triste. Friamente penso, contra esta tristeza e esta vacuidade, que os meus sonhos são exactos, porque os nutre o exacto sangue de uma fatalidade mortal.

Hoje, porém, nem pensar friamente me serve para deixar de sentir-me vazio e triste. A minha raiva é a mesma, sem remédio. O meu desejo de um mundo mais justo e mais claro é o mesmo, trasbordante. Simplesmente, hoje, estou vazio e estou triste.

Uma ave negra tolda-me o espaço e tolhe-me, e o pior é que não caiu de fora sobre mim, mas foi em mim que se levantou, e de mim se levantou, para me toldar o espaço e me tolher, e nem sequer é uma ave de remorsos ou de arrependimento, vergonhosa, que eu, contudo, pudesse matar.

Estou vazio e estou triste. E nem pela análise mais cruel consigo mais que saber porque não é que estou vazio e que estou triste.


(de O Inquieto Repouso, 1973)

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