21.9.03

[gosto muito de inventários XIX]

JORGE LUIS BORGES

Inventário


Há que encostar uma escada para subir. Falta-lhe um degrau.
O que podemos procurar no alto
Senão o que a desordem amontoa?
Há o cheiro a humidade.
O entardecer entra pela casa em lâminas de luz.
As vigas do céu raso estão próximas e o piso está vencido.
Ninguém ousa pôr-se de pé.
Há um velho divã desengonçado.
Há umas ferramentas inúteis.
Ali está a cadeira de rodas do morto.
Há um pé de candeeiro.
Há uma rede de dormir paraguaia, com borlas, a desfiar-se.
Há utensílios e papéis.
Há uma estampa do estado-maior de Aparicio Saravia.
Há um velho grelhador a carvão.
Há um relógio de tempo parado, com o pêndulo partido.
Há uma moldura desdourada, sem tela.
Há um tabuleiro de cartão e umas peças desemparelhadas.
Há uma braseira de dois pés.
Há uma arca de cabedal.
Há um exemplar bolorento do Livro dos Mártires de Foxe, em
[intrincada escrita gótica.
Há uma fotografia que já pode ser de qualquer pessoa.
Há uma pele já gasta que foi de tigre.
Há uma chave que perdeu a sua porta.
O que podemos procurar no alto
Senão o que a desordem amontoa?
Ao esquecimento, às coisas do esquecimento, acabo de erguer
[este monumento,
Sem dúvida menos duradouro que o bronze e que se confunde com elas.

(de A Rosa Profunda, 1975 - incluído em Obras Completas III, editorial Teorema, 1998 - tradução de Fernando Pinto do Amaral)

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