24.9.03

[outros melros III]

FERNANDO ASSIS PACHECO

LUMIAR, LISBOA: UM MELRO NA RAMPA DA TELEVISÃO


Um melro na rampa da Televisão
um melro cantava e eu que chegava
parei-me a ouvi-lo com aqueles garganteios à Elisabeth Schwarzkopf
invejoso daqueles agudos sustentados entre folhas e com o sol do Verão a dar na tromba
como uma pedra
eu ou seja este bípede vestindo camisa Lacoste de crocodilo ao peito
envolto em águas tristes herdadas dos quatro primeiros impérios
que prefiro as salas de trás nas casas de trás das cidades que estão para lá dos rios e das matas de medronheiros
onde ainda tento acender um ou outro amigo com os fusíveis trazidos queimados de África incapaz
por todas as razões expostas de colar suficientemente à melopeia do verso heróico

um melro cantava e eu que parava
pego na esferográfica rasgo metade de um sobrescrito
cedo à «inspiração» para anotar o dístico há mais de um ano tentando a sua vez de ser um fecho aceitável
o mal de muita gente é que anda aos gritos
o mal de alguns de nós é já a esgana

(de Memórias do Contencioso, 1980 - reproduzido em A Musa Irregular, edições Asa, 2ª ed: 1996 - chamo a atenção para a capa que alude a este poema, numa ilustração da filha do autor, Bárbara Assis Pacheco)

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