11.9.03

JOÃO MIGUEL FERNANDES JORGE

IN MEMORIAM ALLENDE


Se eu fosse marxista - porque me abandonaste? Se
neste meio ano vivemos tanto e construímos a nossa casa
num bordel.

Basta-me empurrar uma porta: ajuda-te que
o céu te ajudará - só repito as palavras da Bíblia.
E depois?
De que é que vive o homem? De comer.
E depois?
Talvez um pouco da moralidade ou dos inventos de
Francesco di Giorgio Martini perdão
quero dizer Salvador Allende Gossena. Uma insinuação.
Em setembro de 1970. Esta praia. Esta mesa. O
jornal aberto sob o teu nome escolhido pelo povo de
Santiago pelo povo de Valparaíso e
por aquele que vive ao longo dos Andes falando aracuano.
Lembro
o teu gesto de paz a tua entrada na catedral para seres empossado
lembro e lembro-me que sorri.
Em setembro de 1973. Esta praia. Esta mesa. O
jornal ainda. O teu nome dito.

Olha meu amigo
o que se promete raramente se cumpre eu
eu sou tão infiel a tudo
mesmo às árvores que com certeza plantaste e
onde as rolas hoje fazem ninho (por certo há rolas no teu país).

Olha meu amigo
trago-te esta comida. Tem cinco mil anos ou só a
velocidade dos meus dedos
- uma romã nozes frutos secos e
sob o pequeno armário da manhã
passas de uva.

Olha
vamos morrer? mas morrer não é tudo: seria preciso morrer
muito tarde e
não esqueças: Washington sabe Washington sabe quem sacode os ramos dos
castanheiros.

(de Turvos Dizeres, 1973 - incluído em Obra Poética, volume 2, editorial Presença, 2ª ed: 1987)

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