A imagem com que o Miguel da Cibertúlia deu as Boas Festas na véspera de Natal fez-me voltar a pensar nas questões que se puseram a propósito dos quadros de Paula Rêgo na capela do Palácio de Belém, encomendadas pelo Presidente da República. Nas secções de correspondência dos jornais houve católicos a manifestar a sua indignação, a considerarem uma afronta à figura de Nossa Senhora e à Igreja.
Eu, que sou católico, devoto de Nossa Senhora e também apreciador de arte (ainda que sem grande formação além do que o acaso me traz e das exposições que vou vendo), não me sinto nada ofendido com aqueles quadros.
Nos contextos cristãos (católico, ortodoxo e até mesmo em muitos espaços da Reforma) as várias artes têm sido um meio privilegiado de divulgação da fé como método catequético, de manifestação religiosa e elemento essencial da(s) liturgia(s). Cada tempo e cada lugar transportaram os acontecimentos da fé para o seu próprio contexto e visão do mundo, criando aquilo a que os mais "realistas" chamarão anacronismos.
Um Rei Mago oriundo de Terras de Vera Cruz, com penacho de índio e tudo; um Cristo crucificado gordo à imagem de Buda; o Menino Jesus a brincar com uma hélice renascentista; o apóstolo Pedro vestido de brocados e com tiara papal – nada disto choca os mais renitentes conservadores das "tradições católicas".
Por outro lado a iconografia religiosa nunca foi do uso exclusivo das ortodoxias religiosas nem do teologicamente correcto. Desde cedo que as imagens e símbolos dos cristãos ganharam formas mais populares e simplificadas e extravasaram do contexto próprio em que nasceram ao mesmo tempo que se cristianizavam realidades vindas de muitos lados, numa espécie de troca espontânea, prejudicada pelas tentativas de uniformismo cultual e cultural.
Toda a arte é, em princípio, subversiva. Paula Rêgo tem demonstrado, no desenvolvimento da sua Obra, que sabe canalizar essa subversidade com pertinente ironia e provocação. No caso destes quadros sobre a vida de Nossa Senhora não me parece que haja uma intenção de provocação. Quem leu a entrevista da Grande Reportagem há uns meses, ficará esclarecido (se quiser...) quanto às intenções da pintora. A vida de Maria é usada enquanto história de um imaginário não exclusivamente cristão, deixando de lado teologias ou interpretações religiosas para dar relevo a uma dimensão humana, que passa, obviamente, pela mediação subjectiva da autora.
Tenho para mim que este pode ser um bom exemplo de que a forte influência da cultura cristã na Europa não se resume às estruturas eclesiásticas e que chega a muitos outros ambientes, mesmo aos mais refratários a estas coisas da fé. Assim nas artes como nos valores morais ou nas ideias políticas.
Não podemos ter medo daquilo que em nós começou, antes devemos procurar conhecer o sentido e dar testemunho daquilo em que acreditamos.
Acho que poderia rezar diante de alguns daqueles quadros.
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