7.1.04

"Os cristãos desejam-se arrombadores de arte sacra", considera ele e muito bem, a propósito daquela minha entrada de ontem.
G. K. CHESTERTON

O crescente número de intelectuais que se contentam em afirmar que a democracia foi um fracasso, esquecem o aspecto muito mais trágico e calamitoso que é o facto da plutocracia ter sido um sucesso. Ou seja, que a plutocracia tem tido a única espécie de sucesso que podia ter, porque, não tendo uma base filosófica nem moral, nem sentido sequer, o seu sucesso não podia deixar de ser um sucesso material, um sucesso grosseiro. A plutocracia pode ter apenas o significado de um sucesso de plutocratas enquanto plutocratas. E esse sucesso, gozaram-no eles até há pouco tempo, quando um juízo económico imparcial os abalou como um abalo de terra. Com a democracia o caso é exactamente o oposto. Podemos dizer, com alguma verdade, que a democracia falhou; mas com isso queremos apenas dizer que a democracia falhou na sua tentativa de existir. É um absurdo dizer que os Estados Capitalistas complicados mas centralizados nos últimos cem anos sofreram com a extravagância da igualdade dos homens e da simplicidade da humanidade. Quando muito, poderíamos dizer que a teoria civil preparou uma espécie de ficção legal, segundo a qual um rico homem podia governar uma civilização, quando outrora não podia governar senão uma cidade (...)

(da Autobiografia, trad. e notas de Luís de Sousa Costa, Livraria Morais editora, 1960 - Círculo do Humanismo Cristão)
Lume:
pedra moldada no limite do calor
que encontra o seu chão.

6.1.04

POESIA E BLOGUES (III)

SANDRA COSTA


Nasceu em São Mamede de Coronado, em 1971.
É professora de história e mantém, com a Cláudia Caetano o blog Tempo Dual.


POR ONDE COMEÇAR?

Por Onde começar quando a cor do poema
é um rumor de sal que se agarra aos meus dedos?

Quando o brilho da lua é um fio de maresia
que erra explora se espanta e se desfaz
na claridade marítima dos meus seios?

Quando o perfume das magnólias é um possível cúmplice do vento
que se abriga nos meus teus olhos numa lágrima de ternura?

Por onde começar?...


VEM UM VENTO DO MAR

e a melancolia dança pelos pedaços das cortinas
onde quase-anjos prendem os véus do tempo

Vem um vento do mar

e a solidão interrompe-se nos poros da madeira enegrecida
e nos trilhos que espreitam a janela desde a água

Vem um vento do mar

e há um respirar de espera nas rugas da casa que não se vê


FALÉSIA

A falésia é uma escada para o mar
onde a morte dos dias demora
e as noites acontecem como um presságio.

É um outro horizonte onde os barcos
se perdem em ausências e os filamentos
das anémonas e dos corais se agarram
para que o tempo não caia em desuso.

É um mesmo silêncio que o mar também
sente. Uma mulher que vai pela praia
em lentos passos de pedra e o olhar

náufrago
na maresia.

A falésia é um reflexo do mar.

(de Sob a luz do mar, Campo das Letras, 2002 - Campo de Estreia)


NADA SE SABE DAS PROFUNDEZAS
(primeiro estudo para uma duplicidade)


#1
À superfície do mundo
a ondulação do desejo:

uma pedra - o amor - submersa.

#2
pode o poema permanecer
em círculo água em movimento
e sempre insuficientes as pálpebras
susterem o silêncio?

#3
talvez esta seja a textura dos dias
que se aproximam das profundezas:
a agitação sob a luz nada revela
e criam-se estratificações nebulosas
junto ao olhar como se a inquietude
- a água - fosse o único ritual
capaz de criar o mundo.

#4
[quero] toda a poesia é assim:
um lugar onde a superfície
esconde mais do que revela
e a morte é a pedra possível dentro da água
ao alcance do braço se nada se sabe das profundezas

(texto integral de um livrinho de 8x5,5 cm, com projecto gráfico e fotografias de Paulo Gaspar Ferreira e editado pela in-libris, em 2003)
O Ponto anda divertido com o sitemeter. De facto, das coisas mais engraçadas para quem tem um contador de acessos ligado ao blog é surpreendermo-nos com as pesquisas que fazem os cibernautas chegar até nós.
Depois de referir "Cursos de inglês em Massamá", "Banda sonora dos Morangos com Açúcar", "Sodoma e Gomorra" e de eleger "Quero ver grandes e boas imagens de sexo" como preferida, dedica ainda uma entrada inteira a "Onde comprar ruibarbo?".
Tudo bem... são giras; hoje também cá chegou um à procura de "cancoes dos reis magros". Mas nada que se compare a um espanhol à procura de "retratos de carne guisada".

5.1.04

A imagem com que o Miguel da Cibertúlia deu as Boas Festas na véspera de Natal fez-me voltar a pensar nas questões que se puseram a propósito dos quadros de Paula Rêgo na capela do Palácio de Belém, encomendadas pelo Presidente da República. Nas secções de correspondência dos jornais houve católicos a manifestar a sua indignação, a considerarem uma afronta à figura de Nossa Senhora e à Igreja.

Eu, que sou católico, devoto de Nossa Senhora e também apreciador de arte (ainda que sem grande formação além do que o acaso me traz e das exposições que vou vendo), não me sinto nada ofendido com aqueles quadros.
Nos contextos cristãos (católico, ortodoxo e até mesmo em muitos espaços da Reforma) as várias artes têm sido um meio privilegiado de divulgação da fé como método catequético, de manifestação religiosa e elemento essencial da(s) liturgia(s). Cada tempo e cada lugar transportaram os acontecimentos da fé para o seu próprio contexto e visão do mundo, criando aquilo a que os mais "realistas" chamarão anacronismos.
Um Rei Mago oriundo de Terras de Vera Cruz, com penacho de índio e tudo; um Cristo crucificado gordo à imagem de Buda; o Menino Jesus a brincar com uma hélice renascentista; o apóstolo Pedro vestido de brocados e com tiara papal – nada disto choca os mais renitentes conservadores das "tradições católicas".
Por outro lado a iconografia religiosa nunca foi do uso exclusivo das ortodoxias religiosas nem do teologicamente correcto. Desde cedo que as imagens e símbolos dos cristãos ganharam formas mais populares e simplificadas e extravasaram do contexto próprio em que nasceram ao mesmo tempo que se cristianizavam realidades vindas de muitos lados, numa espécie de troca espontânea, prejudicada pelas tentativas de uniformismo cultual e cultural.

Toda a arte é, em princípio, subversiva. Paula Rêgo tem demonstrado, no desenvolvimento da sua Obra, que sabe canalizar essa subversidade com pertinente ironia e provocação. No caso destes quadros sobre a vida de Nossa Senhora não me parece que haja uma intenção de provocação. Quem leu a entrevista da Grande Reportagem há uns meses, ficará esclarecido (se quiser...) quanto às intenções da pintora. A vida de Maria é usada enquanto história de um imaginário não exclusivamente cristão, deixando de lado teologias ou interpretações religiosas para dar relevo a uma dimensão humana, que passa, obviamente, pela mediação subjectiva da autora.

Tenho para mim que este pode ser um bom exemplo de que a forte influência da cultura cristã na Europa não se resume às estruturas eclesiásticas e que chega a muitos outros ambientes, mesmo aos mais refratários a estas coisas da fé. Assim nas artes como nos valores morais ou nas ideias políticas.

Não podemos ter medo daquilo que em nós começou, antes devemos procurar conhecer o sentido e dar testemunho daquilo em que acreditamos.

Acho que poderia rezar diante de alguns daqueles quadros.
[outros melros XIV]

HANS-ULRICH TREICHEL

BITS E BYTES


Isto não pode acabar bem
isto não pode ser verdade
a lengalenga da eterna
zoada a fábula do
contínuo silvar bits e
bytes escrevem os poetas
nos poemas como se fossem
girassóis como se fosse
canto de melro esse brilho
digital módulos modems
que dia a dia nos cruzam
verdes de vidro fluentes
como éter precisos como
um cintilar no cérebro

[de Como se fosse a minha vida, tradução colectiva (Mateus, Outubro de 1993) revista, completada e apresentada por João Barrento, Quetzal editores, 1994]

4.1.04

[gosto muito de inventários XXXVII]

FABRÍCIO CARPINEJAR

Com cópia em papel carbono


Identificaram os seguintes itens na memória de um homem de idade indefinida, morador solitário da Rua do Arvoredo, em letra datilografada numa Olivetti verde, com fita vermelha e preta. Uma por uma das peças e pequenos fósseis foram retirados de suas lembranças. Havia mais de cem pedras obstruindo a vesícula da memória.

Kichute. Vinil. Creolina. Mimeógrafo. Placar. Corcel II. Carpim. Eslaque. Laquê. Bilboquê. Bambolê. Marcha no guidão. Groselha. Ki-suco. Vendedor de Mirador. Perdidos no espaço. Jeannie é um gênio. Elo Perdido. Terra de Gigantes. Daniel Boom. Figueroa. Túnel do Tempo. Fitipaldi. Pampa Safari. Escaler. 14 Bis. Secos e Molhados. Revista Manchete. Futebol cards. Bolita. Pegador de armazém. Balança de pinos. Sete belos. Funda. Sapato de bico. Boca de sino. Chacrina. Gretchen. Bolinha. Saramandaia. Irmãos Coragem. Bigode. Paulo César Pereio. Mad. Maricas. Dona Flor e seus dois maridos. Pink Floyd. Corneta do Rintintin. Lassie. Bolachas Maria. Guimba. Fralda de pano. Auxílio à lista. Dancin'Days. Discoteca. Meretriz. Sofá-cama. Beliche. Loção pós-barba. Ceasa. Herbie. Fusca. Opala. Ilha do paraíso. Love story. Nescau. Regina Duarte. Cruzeiro. Fiado. Lampião. Minancora. Babados. Mequetrefes. Grega. Abrigo Adidas. Balela. Disco. Caldo de cana. Mandiopã. Coelho Ricochete. Reunião dançante. Hanna & Barbera. Cueca virada. Bolinho de chuva. Pipoca com mel. Cuba libre. Cartilha. Caderno de caligrafia. Globo de espelhos. Supercine. Papel de parede. O céu é o limite. Jota Silvestre. Flavio Cavalcante. Escrava Isaura. Sobrancelhas raspadas. Peruca. Playmobil. Meias de lurex. Cuecão. Drive in. Polaroid. Santinhos. Corner. Pelota. Tiro de canto. Cinto para emagrecer. Pulseiras magnéticas. Magnésio. Cestas de natal. Caloi. Estação férrea. Prostíbulo. Curetagem. Sacristão. Coroinha. Felação. Arena. Venezianas. Vidro fumê. Óculos Ray Ban. Estilingue. Abluções. Chaco. Mercúrio Cromo. Panacéia. Casquinha. Amolador. Sal de frutas. Bolo inglês. Morfina.

Mesmo lavrado em cartório, o homem precisou de um tradutor para dar sentido ao que recordava. Usava suspensório. Guardava a dentadura de alguém no copo de requeijão. O relógio da parede da cozinha não acompanhava o horário de verão, dando sinais de subversão. Uma cobiçada reprodução da Última Ceia estava fixada com durex no corredor azul. Muitos vocábulos saltavam sublinhados. Ele era um dicionário aleatório. Verbete sem sinônimo e esposa. Reduzido pela rua, se considerava perseguido pela língua, minoria nas palavras cruzadas. Suas fotos não tinham rascunhos. Não deixou herdeiros. As datas apareciam borradas. Costumes foram umedecendo no papel de presente dos cadernos e do fundo das gavetas. Era o que não voltou. Tudo o que escrevia fazia em papel carbono. Ele se dizia consumido.

(roubado, hoje mesmo, daqui)
[gosto muito de inventários XXXVI]

ANTÓNIO GEDEÃO

Pedra Filosofal


Eles não sabem que o sonho
é uma constante da vida
tão concreta e definida
como outra coisa qualquer,
como esta pedra cinzenta
em que me sento e descanso,
como este ribeiro manso
em serenos sobressaltos,
como estes pinheiros altos
que em verde e oiro se agitam,
como estas aves que gritam
em bebedeiras de azul.

eles não sabem que o sonho
é vinho, é espuma, é fermento,
bichinho álacre e sedento,
de focinho pontiagudo,
que fossa através de tudo
num perpétuo movimento.

Eles não sabem que o sonho
é tela, é cor, é pincel,
base, fuste, capitel,
arco em ogiva, vitral,
pináculo de catedral,
contraponto, sinfonia,
máscara grega, magia,
que é retorta de alquimista,
mapa do mundo distante,
rosa-dos-ventos, Infante,
caravela quinhentista,
que é cabo da Boa Esperança,
ouro, canela, marfim,
florete de espadachim,
bastidor, passo de dança,
Colombina e Arlequim,
passarola voadora,
pára-raios, locomotiva,
barco de proa festiva,
alto-forno, geradora,
cisão do átomo, radar,
ultra-som, televisão,
desembarque em foguetão
na superfície lunar.

Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida,
que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança.

(de Movimento Perpétuo, 1956)
[gosto muito de inventários XXXV]

MÁRCIA MAIA

inventário


reparto
talheres
e
panelas

ao
fogo
a mobília
e
todas
as
tralhas
antigas.

ex-
relíquias
adeus!

quero-
me

quando
o
sol
do
último
dia
aparecer.

(roubado daqui, no último dia do ano passado)
[gosto muito de inventários XXXIV]

JOAQUIM PESSOA

É um barco e uma pedra.
É a pedrada no charco.
É o orvalho na erva.
É a bandeira. É o arco.
É a chuva. É o outono.
É a sopa de hortelã.
É o cão que não tem dono.
É o bicho da maçã.
O tempo que está mudado.
É o orgulho nacional.
É a balada. É o fado.
A galinha no quintal.
O carneiro a remoer
as hortenses da avenida.
É o silêncio a bater
numa vidraça partida.
É o ódio que nos cega.
É o braço que se estende.
O discurso. A cabra-cega.
É o homem que se vende.
É o peito que não pára
de apertar o coração.
É a comida mais cara.
É a cara contra o chão.
É a semente na terra.
É o trigo na seara.
É uma arma de guerra.
É a raiva que dispara.
É o lobo que devora
as canelas da poesia.
É o momento. É a hora
de estrangular a alegria.
É a videira. É o vinho.
É o copo de amargura.
É a santa da Ladeira.
São as raias da loucura.
É o tejo que se embala
num cacilheiro doente.
É o desejo que estala.
É o buraco no dente.
É o dinheiro. É o juro.
O amor em percentagem.
É o passado e o futuro.
É uma questão de coragem.
É o que sobra. É a falta.
É o emprego decente.
É a amizade da malta.
É a ternura da gente.
É a mulher que pariu.
É o filho que se fez.
É a corda e o rastilho.
É o sarilho outra vez.
É o mapa desenhado
sobre as costelas partidas.
É o sorriso emprestado.
A hipoteca das vidas.
É a mágoa registada.
É a patente do medo.
É a cultura enlatada.
É o drama sem enredo.
É o rugido da fera.
É o marquês de pombal.
O cravo na primavera.
Uma prenda de Natal.
É o azul. É o vício.
É a carga de porrada.
É a cara do polícia.
É a liamba fumada.
O ministro que promete
que amanhã irá chover.
O desenho na retrete
para toda a gente ver.
É a dança. É o marasmo.
A paragem do autocarro.
É atingir o orgasmo
com o fumo de um cigarro.
É chamar nomes à mãe
do tipo que está ao lado
e responder a alguém
Eu estou bem, muito obrigado!

(de Português Suave, 1979 - incluído em Amor Combate, Litexa, 1985)

3.1.04

EDUARDO GUERRA CARNEIRO

Nasceu em Chaves, em 1942.
Foi também jornalista.
Foi hoje noticiada a sua morte.

É hoje vulgar dizer-se: "Isto anda tudo ligado, como diz o poeta." E qual é o poeta que diz: Isto anda tudo ligado? Camões? Pessoa? Não. Isto anda tudo ligado é o título dum livro que Eduardo Guerra Carneiro publicou em 1970.
O que para o poeta andava ligado naquele já remoto ano de 1970? Tudo: a cerveja, os Beatles, uma mesa de café numa pequena vila perto de Tomar, um poema da Camilo Pessanha, a Twiggy (inventora de minissaia), a memória "destes anos, destas cidades mornas onde com vagar enlouqueço", enlouquecemos, enlouqueceremos. E também Allen Ginsberg, Joan Baez a cantar, a estação de Nelas, uma enorme bebedeira na Covilhã, Walt Whitman, os guerrilheiros que saem do Vavá "com uma citação à bandoleira". E outra vez a cerveja: as letras "que escorrem pela caneta como a cerveja pelos cantos da boca"...
Poesia em prosa, prosa de poeta incorrigível, melancólico, irónico, um tudo-nada romântico. Poesia às vezes jornalística, quotidiana e quotinocturna, em cima do acontecimento. Antes, durante e depois da ressaca. Confissões, recordações da terra natal, paisagens, retratos. (Manuel João Gomes - texto da contra-capa de Profissão de Fé)

ÁRVORE

Árvores crescem em lugares
inesperados. Árvores estranhas
com seus frutos humanos. Árvores
de guerra caídas sobre a estrada.
Árvores de paz rompendo os ramos.
Ar de Abril desfeito numa tempestade.
Árvore como se fosse uma armadura
onde ainda escrevo sem querer,
sem crer, teu nome - ligeiro arbusto

(da sequência Jardim de alguns objectos e coisas reais)

Há um arcanjo de que Rilke falava. Uma pedra tumular no mosteiro de Leça do Balio. Um relógio despedaçado encontrado junto ao Drugstore dos Campos Elísios. Uma rapariga que subitamente parou e alguém lhe deu a mão. Nunca se tinham visto ou encontrado e qualquer coisa ali se passou que ele não sabe explicar pois havia demasiado movimento, alguém que esperava lá ao fundo, ele soltou a mão que segurava, ela afastou-se, e cada um, ainda a olhar para trás, partiu para seu lado para nunca mais se ver ou encontrar.

(da sequência Isto anda tudo ligado)
(de Isto Anda Tudo Ligado, Cadernos Peninsulares, 1970)

AZULEJOS

A luz entre as mãos é azulejo
no redondo do gesto - ombro ou testa.
O olhar já se perde noutro texto:
unhas de Pessanha, cotovelo alevantado,
o sorriso onde África desenha o gosto
- dança e desejo do ar livre. A cal
não é de morte. O sol ainda brilha
em teu gostar. Juntas as mãos; arde
vento noutros campos. Da claridade
agora vejo esses contornos. Perturbado
avanço, na curva entre os peitos. Ancas
juntas com medo de eu abrir
mercado e fábrica. A luz de novo acesa?
O azulejo é esplendor; entrar na casa.

Sim: azulejos são desejos de eu voltar.
Cantigas? Nem amigas me fazem desistir
do meu enterro. Assim destino a vida
em desatino. Envolvo o corpo na batina
sem sossego e já torno ao copo, à capa
do regresso. Revoltas no azulejo
em azul e amarelo na parede.
Retrato anónimo onde artista
argamassa o desejo, já assina.
Desistir? Não desisto antes do fim!
Insisto em mim. Cantigas? Assim
contorno o azulejo. Peço afinal
mais um copo - regresso
ao corpo-a-corpo do desejo.

GATO

Chama-se Luís o gato do terceiro
e é companheiro de um mestre filósofo.
Em madrugadas altas há por vezes sobressalto.
quando o bichano acorda mal disposto.
O professor, sábio também
em jogos de paciência, acalma
o animal e já o mima. Trata-se,
vendo bem, de outra ciência,
tão difícil de conseguir como
um estudo de Pessoa. Chama-se Agostinho
da Silva, o do terceiro, e tem um gato
com quem, à vontade, discreteia.
Luís, discípulo, ronrona baixinho.
Tudo vai bem, assim, no sete desta rua.

(de Contra a Corrente, &etc, 1988)

As cores

Amarelo sobre lilás, faixas de
laranja e muito verde. Do outro lado
o castanho terroso, o azul pálido,
alguma prata na neblina.
Rompe-se depois o vermelhão,
entre o ultramarino, e um vago
sépia surge nos contornos brancos.
O voo cinzento das aves risca
esta paisagem e apenas em fundo,
tremura junto à praia, a rebentação.
Quase sem tempo, nem espaço
para os versos, distingo ainda
um ovo de luz a afundar-se
enquanto a Outra assume a dignidade.

(de Profissão de Fé, Quetzal editores, 1990 - Grafitti)

[outras evocações deste poeta no Aviz e no Almocreve das Petas]

2.1.04

FAUSTO

Uma cantiga de desemprego


Fumo um cigarro deitado
no mês de Janeiro
fecho a cortina da vida
espreguiço em Fevereiro
e procuro trabalho
nesta esperança de Março

já me farta de tanto Abril
e aquilo que não faço
espreito por um funil
a promessa de Maio
porque esperar prometido
nessa eu já não caio

queimo os dias de Junho
no sol quente de Julho
esfrego as mãos de contente
num sorriso de entulho
para teu grande desgosto
janto contigo em silêncio
e lentamente esquecido
digo-te adeus em Agosto
meu Setembro perdido
numa esquina que eu roço
e penso em Outubro
o menos que posso

mas quando sinto a verdade
daquilo que cansa
nunca houve vontade
do tempo de andança
sinto força em Novembro
juro luta em Dezembro

(do álbum Madrugada dos Trapeiros, de 1977)

1.1.04

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN

A PAZ SEM VENCEDOR E SEM VENCIDOS


Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos
A paz sem vencedor e sem vencidos
Que o tempo que nos deste seja um novo
Recomeço de esperança e de justiça.
Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos

A paz sem vencedor e sem vencidos

Erguei o nosso ser à transparência
Para podermos ler melhor a vida
Para entendermos vosso mandamento
Para que venha a nós o vosso reino
Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos

A paz sem vencedor e sem vencidos

Fazei Senhor que a paz seja de todos
Dai-nos a paz que nasce da verdade
Dai-nos a paz que nasce da justiça
Dai-nos a paz chamada liberdade
Dai-nos Senhor paz que vos pedimos

A paz sem vencedor e sem vencidos

(de Dual, 1972)
CASIMIRO DE BRITO

A PAZ


Se eu te pedisse a paz, o que me darias
pequeno insecto da memória de quem sou
ninho e alimento? Se eu te pedisse a paz,
a pedra do silêncio cobrindo-me de pó,
a voz limpa dos frutos, o que me darias
respiração pausada de outro corpo
sob o meu corpo?

Perdoa-me ser tão só, e falar-te ainda
do meu exílio. Perdoa-me se não te peço
a paz. Apenas pergunto: O que me darias
em troca se ta pedisse? O sol? A sabedoria?
Um cavalo de olhos verdes? Um campo de batalha
para nele gravar o teu nome junto ao meu?
Ou apenas uma faca de fogo, intranquila,
ao centro do coração?

Nada te peço, nada. Visito, simplesmente,
o teu corpo de cima. Falo de mim,
entrego-te o meu destino. E a morte vivo
só de perguntar-te: o que me darias
se te pedisse a paz
e soubesses de como a quero construída
com as matérias vivas da liberdade?

(de Jardins de Guerra, 1966)
Papa PAULO VI

Dirigimo-nos a todos os homens de boa vontade, para os exortar a celebrar o «Dia da Paz», em todo o mundo, no primeiro dia do ano civil, 1 de Janeiro de 1968. Desejaríamos que depois, cada ano, esta celebração se viesse a repetir, como augúrio e promessa, no início do calendário que mede e traça o caminho da vida humana no tempo que seja a Paz, com o seu justo e benéfico equilíbrio, a dominar o processar-se da história no futuro.
Nós pensamos que esta proposta interpreta as aspirações dos povos, dos seus governantes e das entidades internacionais que intentam conservar a Paz no mundo; das instituições religiosas, tão interessadas no promover a Paz; dos movimentos culturais, políticos e sociais que fazem da Paz o seu ideal; da juventude, em quem mais vivas estão as perspectivas de caminhos novos de civilização, necessariamente orientados para um seu pacifico desenvolvimento; dos homens prudentes que vêem quanto a Paz é necessária e, ao mesmo tempo, quanto ela se acha ameaçada.
A proposta de dedicar à Paz o primeiro dia do novo ano não tem a pretensão de ser qualificada como exclusivamente nossa, religiosa ou católica. Antes, seria para desejar que ela encontrasse a adesão de todos os verdadeiros amigos da Paz, como se se tratasse de uma iniciativa sua própria; que ela se exprimisse livremente, por todos aqueles modos que mais estivessem a carácter e mais de acordo com a índole particular de quantos avaliam bem, como é bela e importante ao mesmo tempo, a consonância de todas as vozes do mundo, consonância na harmonia, feita da variedade da humanidade moderna, no exaltar este bem primário que é a Paz.
A Igreja católica, com intenção de servir e de dar exemplo, pretende simplesmente «lançar a ideia», com a esperança de que ela venha não só a receber o mais amplo consenso no mundo civil, mas que também encontre por toda a parte muitos promotores, a um tempo avisados e audazes, para poderem imprimir ao «Dia da Paz», a celebrar-se nas calendas de cada novo ano, carácter sincero e forte, de uma humanidade consciente e liberta dos seus tristes e fatais conflitos bélicos, que quer dar à história do mundo um devir mais feliz, ordenado e civil.

(Início da Mensagem para a celebração de um «dia da paz»)