JORGE DE SENA
FANTASIAS DE MOZART, PARA TECLA
Entre Haydn e Chopin, aberto para o que um foi
e o outro poderia ter sido, havia neste homem uma vida oculta
da sua própria vida, das próprias formas a que fingia escravizar-se
alegremente, da mesma graça leve e melancólica que era o mais
que, em música, a imaginação e a sociedade permitiam
como consciência crítica da vida. Havia estranhamente
um sentimento do mundo, em que o homem devia ser
não apenas ele mesmo afirmadoramente, mas, mais do que isso,
devia ser, além da consciência de si mesmo, colectivamente
feliz. Um mundo em que a alegria não devia ser
só a nostálgica presença da felicidade sempre mais sonhada
que vivida, mas uma estrutura de se estar no mundo
consigo e com os outros. Nestas divagações
perpassa uma coisa estranha, inteiramente nova:
uma alma.
Que não é preexistente a nenhuma música,
e que nenhuma música é criada para exprimir.
Uma alma que podia parecer ao próprio músico
aquela que se perde ou que se ganha nos rituais ocultos
de aceitar-se a vida como sonho ascensional.
E que todavia era apenas o que não temos ainda meio de chamar
outra coisa que alma, não do mundo, não daquele homem,
mas a firmeza de reconhecer-se, através da criação
de formas que se multiplicam, a criação dela mesma
como a relação, o laço, o traço, o equilíbrio
entre um homem que é mais do que si mesmo
e um mundo que sempre outro se amplia de homens
felizes de que a música os não diga
mas os faça. Como
foi possível que este homem alguma vez morresse?
18/9/65
(de Arte de Música, 1968)
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