11.9.09


[Em face dos últimos acontecimentos]

JORGE DE SENA

[JORGE DE SENA] DIRIGE-SE AOS SEUS CONTEMPORÂNEOS

Podereis roubar-me tudo:
as ideias, as palavras, as imagens,
e também as metáforas, os temas, os motivos,
os símbolos, e a primazia
nas dores sofridas de uma língua nova,
no entendimento de outros, na coragem
de combater, julgar, de penetrar
em recessos de amor para que sois castrados.
E podereis depois não me citar,
suprimir-me, ignorar-me, aclamar até
outros ladrões mais felizes.
Não importa nada: que o castigo
será terrível. Não só quando
vossos netos não souberem já quem sois
terão de me saber melhor ainda
do que fingis que não sabeis,
como tudo, tudo o que laboriosamente pilhais,
reverterá para o meu nome. E mesmo será meu,
tido por meu, contado como meu,
até mesmo aquele pouco e miserável
que, só por vós, sem roubo, haveríeis feito.
Nada tereis, mas nada: nem os ossos,
que um vosso esqueleto há-de ser buscado,
para passar por meu. E para outros ladrões,
iguais a vós, de joelhos, porem flores no túmulo.

(de Metamorfoses, seguidas de Quatro Sonetos a Afrodite Anadiómena, 1963 - a alteração do título é da minha responsabilidade)


MÉCIA DE SENA

(excerto de) Alguns «Flashes»

(...) No dia em que o Jorge chegava com o ordenado eu fazia montinhos do dinheiro para os pagamentos mais urgentes, contava e recontava, para concluir sempre que. nem sequer chegava para pagar tudo, quanto mais para sobreviver trinta dias!
A primeira vez que tive com que viver até o mês acabar foi em Junho de 1978. Essa tranquilidade minha a pagaste com a tua vida. Preferia passar fome.

(in As Escadas não têm Degraus 1, livros Cotovia, Janeiro de 1989)

[a imagem foi reproduzida a partir da capa de Sobre Cinema, concebida graficamente por Luís Miguel Castro, numa edição da Cinemateca Portuguesa de 1988]

5 comentários:

Paula Raposo disse...

Gosto muito de Jorge de Sena. Tenho a correspondência dele com a Sophia e é um livro perfeitamente fabuloso. Beijos.

Graça disse...

Também gosto muito de Jorge de Sena.

Bom fim de semana. Beijo.

Teka disse...

Rui adorei!
Um pedido, não encontro um poema de Jorge de Sena que se chama "encontro", gostaria tanto de o ter.
Conhece?
Um abraço

ruialme disse...

Cara Teka, existem dois poemas de Jorge de Sena com esse título - um já da maturidade e outro de quando tinha 19 anos, recolhido postumamente. Deixo os dois aqui.


ENCONTRO

I

Todos os dias
me espreitava com sorrisos tão sérios
que insulto seria não sorrir também.
Sempre sorri, portanto; e, todavia,
alguma coisa na distância se perdia,
como não lembro bem.
Um jeito de haver sombra?
Um hálito? Um desvão?
Um só imaginar como pousar a mão?

II

À glabra pele em pregas secas
do corpo que, recurvo, ainda repousa
os músculos macios e dormentes,
descem meus olhos ardentes,
em sussurros brandos.

Dourada vibra uma penugem ténue.

III
Prende-se a mão nos ossos encobertos,
se em deslize alheio.

Um leve circular de dedos mal despertos
da dormência dos olhos.

Um peso, um palpitar,
um suado enleio.

15/8/1950

(de Fidelidade, 1958)



ENCONTRO

Tu vinhas pela rua
e, creio,
na intenção de não me ver.

Eu fiquei observando
o teu aproximar
e não pensava
e não dizia nada a mim mesmo.

Mas quando passaste ao meu alcance,
mas porquê?
Sem querer, chamei-te.

Para ti nada tem memória positiva
e falaste-me sorrindo
como se nada tivesse acontecido,
como se fosses tu quem me chamasse.

Os passos que demos lado a lado
chegaram a ser contentes
e mais leves...

Despedimo-nos,
de tácito e repentino acordo.

Não me lembrei de olhar
o teu vulto ao afastar-se...

E tudo o que arranjara
para te dizer,
quando um dia te encontrasse,
apesar de ter princípio, meio e fim,
não apareceu,
não flutuou,
ficou dentro de mim,
ficou longe de mim,
e bem sei que agora nunca mais sairá.

27-28/10/38

(de Post-Scriptum II, 1985)

Teka disse...

Rui
Muito obrigada pela sua atenção e pelos poemas.
São os dois lindos.
Era o primeiro que procurava, não conhecia o segundo.
Um abraço
Teresa