6.10.13

JOÃO MIGUEL FERNANDES JORGE


FANTASIA PARA VIOLA

Ouvi uma das noites deste outono
as fantasias para viola de Henry
Purcell. Já as conhecia. Pela
noite de Óbidos
Savall ia apresentando um por um
os intérpretes, e dizia um pouco
sobre a história de cada viola da
gamba dedilhada, e também sobre
o violone tocado pelo senhor
Lorenz Duftschmidt, austríaco a
quem, e não sei por que razão
oculta, fixei o nome. Quando
chegou a Montserrat Figueras, que
entre as peças cantou além de
Purcell, Byrd, talvez com o sentido
de amenizar o tempo que era
necessário, entre as fantasias,
para o afinamento das violas que
obrigavam a rápidos desacertos, à
fuga de uma nota áspera na húmida
igreja de S. Tiago, intramuros. E
ele disse de Montserrat Figueras
«o único instrumento contemporâneo,
a sua voz».
Ninguém poderá saber como chegaram
as harmonias das violas que tocaram
Purcell
a este castelo que foi o centro do
mundo da minha infância; eu sei
ou julgo que sei todas as cores que
pelo outono descem o pano das
muralhas até ao mar,
do alto das ameias vê-se que não é
longe, basta seguir o áspero
caminho dos sentidos e depois tudo
se passará como quem descobre o
parentesco entre deus e o mundo.
Castelo e muralhas já não são
pedras de nenhum destino, a voz
foge da pressão da vida, queria
que cantasse sempre,
sem parar,
eternamente.


(de Não É Certo Este Dizer, Editorial Presença, 1997 / colecção forma)


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