3.2.04

ANTÓNIO RAMOS ROSA

ATRAVESSAR O DESERTO


Repetem-se as palavras como a erva.
Entre o corpo o muro há um vazio voraz.
Este é o intervalo entre os flancos da terra
Esta a boca sem lábios que lê os ossos da página.
O poema reúne todas as partes vivas.
A palavra apaga-se na nudez que se propaga.
As letras renascem de uma inércia atroz.
O corpo é um soluço sem sol e sem palavras.
Como passar o deserto sem a água do silêncio?
Como atravessar a página sem a sombra das letras?
As perguntas são ardentes imagens que se despem.
A nudez recomeça entre todas as letras.
O sentido percorre os ombros do silêncio.
Não há diferença alguma entre o corpo e a sombra.
O poema é legível nesta unidade obscura.
A claridade é o livre interrogar que avança.
O poema é o ardor do espaço, o deserto incandescente.

(in «ARCO-IRIS», Caderno de Ideias Literárias, 3, Porto, Abril de 1977 - edição conjunta dos 3 primeiros números: A Regra do Jogo, 1977 - direcção de Eduardo Paz Barroso e Paulo Jorge Tunhas)


EXERCÍCIOS DO DESERTO

I

Que sinal acender?
A mão sem terra sem o fogo.
O suporte inicial? A busca unânime?

A mão na folha procura a fenda.
Desesperados insectos sobre o pulso.
Onde vive o desejo? Nestes resíduos ténues?

Onde. Soa a pedra. Recorda a pedra.
Ou a sombra do corpo. A leve
circunferência em torno da nudez.

Um nome de ar e terra, um nome só
agora no centro desolado.
Um nome acorda?
Um flanco alvo no desolado centro.
A tangência feliz dos dedos sobre o cimo
de um corpo em gestação. Que nome
és tu, que nome ou nomes,
onde e onde
e boca ou folha
e não são os resíduos sobre a sombra.

Onde tocava a pedra. Onde o corpo.

II

Vestígios de um lugar. Vestígios verdes
cinzentos
Mas sem o espaço sem a amplitude do campo.

Escrever com ardor na sombra do quarto.
Á espera de. Ou sem esperar. Escrever.
E ele escreve, ele espera o que ele chama

a densidade.

III

Talvez seja o momento de.
Mesmo sem esperança. E ele escreve:
nenhum impulso para ti.
Um espaço deserto.

Ele prescuta entre as pedras e as sombras.
Nada vê. Ignora. Olha.
que traços são estes, qual a origem destas palavras nulas?

Ele escreve. Ele deseja esse desejo
de tornar habitável o deserto.

(in «ARCO-IRIS», Caderno de Ideias Literárias, 4, A Regra do Jogo, 1977 - direcção de Eduardo Paz Barroso e Paulo Jorge Tunhas)


[não sei se estes poemas tiveram outra edição]

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