[60 anos]
HELDER MOURA PEREIRA
O chefe do bando desviava-se um pouco, quase
tocava as folhas, de zinco, duas telhas partidas,
a chaminé disfarçada de negro. O que se vê
da minha janela virada a oeste demora o tempo
entre as passagens da casa, vejo metade do rio,
metade do jardim, a rua toda, uma árvore a morrer
cada mês que passa. Este acto de estar tão parado
traz sombra de hesitação e temor, fecho os olhos,
heróis da infância recuperam a memória, roseiras
tiradas aos campos ficam em arco com o arame
preso, o mar tão longe da cidade grande, conchas
numa gaveta, o Almanaque aberto a meio com uma fita
encarnada. O que se vê da minha janela é mais
para dentro de mim, vou saber o que arde
nesta inquietude, vou semear paciências, rainhas
dos prados.
(de À Luz do Mistério, 1983)
Ipsis Verbis
Coisas, pequenas coisas, reunidas em sermões
para a morte, porque fugis de ouvir
os meus lamentos, imploro de noite
e não me atendeis, eu porém sou um verme
e não um homem, a abjecção da plebe,
ajudai-me que não há quem se aproxime.
O meu coração é cera que se derrete
dentro das minhas entranhas. Os meus ossos,
posso contá-los e no fim, alto e bom
som, não faltando nenhum, estremecerei
o mundo gritando Vivam para sempre,
para todo o sempre, os vossos corações.
(de Um Raio de Sol, Assírio & Alvim, 2000)
SOMBRA
Não posso falar dos meus começos,
porque não me lembro deles, mas posso
imaginá-los, porque é a única maneira
de invocar uma verdade que me escapa.
Isto sei: o pensamento vago de uma sombra
atravessou todo o corredor de melancolia.
Parti-me a rir, nunca o drama individual
conseguira mostrar em palavras tamanho
erro descritivo, de cinco em cinco anos,
coladas na parede, fotografias de tamanhos
variados, nem os dentes, nem o cabelo,
a expressão ou o género de roupa, nada
mostra alguma coisa do retrato de hoje.
Ou seja, a pessoa não existiu, foi
existindo, e em cada existência renasceu,
estupidamente renasceu, e para não ser
senão o pensamento vago de uma sombra.
(daqui)
POEMS FROM THE PORTUGUESE
Há 2 horas
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