4.1.09

MARIA DULCE GUERREIRO

13.


Os animais que descem a encosta alimentam-se com a coragem do olfacto. São as coisas vivas e convictas que aparecem diante dos olhos, repentinas e sem motivo, visões que se demoram nas pedras ásperas do tempo, no declive das gerações esfaimadas; são os bichos que assombrosamente atravessam as trevas sem nenhuma comoção, nenhum afecto elementar, as divinas coisas antes da origem do amor, no ponto do seu terrível e glorioso salto de fé.

Os animais da noite apelam à força bruta e urgente, inadiável, tão insistente, risível e quebradiça; atormentam como a lenta depuração do sangue na contingência argilosa da criação. Contemo-los para não morrermos no deslumbramento do luar, abominamo-los para que não se quebrem e desconcertem na irrelevância do seu poderoso instante. Nos primeiros dias do amor expande-se a rosa aérea e a respiração da ternura é a grande usurpadora. Assim é viver e caminhar na hora geral dos homens, desbravar a sarça, vibrar rapidamente nos múltiplos termos do coração que pulsa no tempo fabuloso das origens Todas as coisas magníficas se inclinam vertiginosamente para dentro, é preciso brutalmente acordar, brutalmente enlouquecer, é urgente a saliva na boca, a imensa alegria do fogo desenraizando da garganta um burburinho de palavras, é urgente a admissão dos acontecimentos excepcionais.

Com seus secretos instintos, sua pele incandescente, seu olho de natureza solar, sua confidência animal de corpo ígneo, liberta-se o conhecimento do amor no sentido extraordinário do seu fenómeno. Brota da terra primária feito em pedaços, numa festa de coisas gloriosas que parecem pertencer à duração; como água que explode da névoa vem o conhecimento do amor desassossegar os bichos em seu admirável balbucio, porque há essa necessidade tão grave quanto magnífica de se conhecer todas as coisas.

(de Assombrosamente os bichos atravessam as trevas, inédito - Menção Honrosa da 1ª edição do Prémio Manuel Alegre, promovido pela Câmara Municipal de Águeda)

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