15.11.03

EDUARDA TAVARES

Nasceu em S. Miguel, Açores, em 1965.


A cada instante os nossos olhos permanecem em silêncio no nome de cada forma, de cada abandono.
Um anjo, exactamente de uma cor igual à cor do dia, passa junto a nós, e os nossos membros reconhecem o movimento de se enlaçarem a qualquer coisa, qualquer coisa como o corpo desse anjo, ou a desconfiança num segredo que trazem em nome da nossa dor. Mas sendo quase só a vastidão do tempo a nossa dor, não podemos esperar que o nosso corpo se aperfeiçoe, nem mais, nem menos, na solidão do que isso. Fingimos.


*


Junto ao portão virei todo o meu tronco para vocês, os anjos.
E junto aos meus olhos recebi gestos de uma subtileza incrível.
Foi um tormento, o meu sorriso não soube imitar-vos e ser sereno ao mesmo tempo. Mas os vossos braços ao chamarem-no, acolheram-no no mais doce da vossa pele.
Depois pronunciaram o meu nome - didi - disse um anjo pequeno. Desfiz-me num movimento lento, e ao olhar para onde vinha a voz, vi belamente o meu sorriso, sereno à minha espera.


*


Tarefa: Descrever a passagem do estado de alguém que nos
Atrai, ao estado de alguém que deixa de nos atrair.

Era o tempo de usarmos os relógios separados. E era também o
tempo de não vermos as horas. Era o tempo de não ser assustador o tempo.
Falo da luxúria dos segundos.
Falo dos tempos da luxúria do meu rosto.
E da luxúria do teu na imagem do meu.

Falo agora de quando perdi o meu relógio
Falo de quando precisei de saber as horas
e tive de perguntar a outrem
Falo do tempo em que no teu relógio, embora sendo perfeito, nunca via as horas.
Falo que elas conheciam a luxúria e já não conhecem
Falo de um tempo assustador - o meu.


*


Comprei uma casa com os riscos suficientes para ser minha.
Um quarto para o meu corpo.
Um quarto para a minha amada.
Um quarto para a loucura.
Um quarto para as perguntas.
E à saída, um quarto que espera as respostas.


*


Ao sair a minha sombra feminina desprendeu-se de mim.
Desprendeu-se na forma mais lenta de dizer adeus sem mesmo dizer se voltava. Tdos os dias, quando os moinhos ao longe adormeciam na agitação impossível, os meus olhos vagueavam no sonho efémero da sua liberdade, como a juventude erra enfim distante da idade, até que alguém ouça finalmente dizer - perdeu-se.

(de Sono Derramado, editorial Caminho, 1992)

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