13.11.03

IVONE CHINITA

Nasceu em Grândola, em 1949, mas passou a maior parte da sua vida nos Açores.
Morreu em Espanha, em 1983.


há sempre um barco

a parede da ilha está na rocha
a porta da ilha está no porto
a parede da fome está no estômago
a porta da fome está em nós

ao porto a (em) nós
existe uma certeza


há sempre um barco que chega


as mãos

um homem com os bolsos das calças amarfanhados pergunta
viste minhas mãos por aí abaixo
tá maluco tadinho
e ele continua a correr aproximando-se do mar
precisava das mãos as mãos para abraçar o filho pois o filho
que andou na guerra já o vê a desfilar aprumado e feliz pelas ruas
as senhoras do movimento disseram até que as janelas teriam colchas
e banda também o homem está triste fixa os pés crispa os
bolsos das calças procurando afanosamente as mãos necessárias

és o fantasma do presente esvoaças em volta das mãos necessárias
teus olhos eram verdes se não me engano e ficavam mais belos
quando perto do mar

(de digo fome, 1970 - reproduzido em: Sempre disse tais coisas esperançado na vulcanologia - 12 poetas dos Açores, org. e notas de Emanuel Jorge Botelho)


OS FILHOS

Interrompo aqui
para te olhar os dedos
pequenos nos gestos
muitos e rápidos
de fino ouvido fico

ouço-te e amo-te

Interrompo
para te reter em mim
nos cinco sentidos
antes que cresças
e partas

interrompo-me aqui


[Breves Poemas Estivais]

3.
se devagar meus passos com
teus passos cruzam
pousando a carga de água
que sobre os ombros teus
tanto te pesa, é líquida
a ternura no teu rosto

4.
a cidade se deserta
na casa não me esperas
e os semáforos mudam
de ritmo para nada

chegam as primeiras chuvas
em sossego me fico
ouvido nas portas
nas janelas

5.
das mil e uma formas de ler
o relatório escolherei uma
deambularei pelo teu corpo dorso
receptiva a cada novo espaço

eu não posso saber em que ponto
fiquei, deambularei pelo teu corpo


POEMA TREMENDO

do tremendo poema que já fiz
ou antes do tremendo poema ficaram
gestos pouco diluídos
no ar pesado para respirar
como cinzenta era a ilha
e tremenda a solidão dos passos
deslocados sob os pés de
marinhante

a tristeza da criança
sentada ao meu lado
ocultando as nódoas da blusa

a roupa inevitável pendurada
nas cordas
a dor nas costas da mãe
lavando uma vida toda
lavando uma vida toda

mas tremenda, tremenda mesmo
é esta tarde parada
em que não temos coragem
de soprar no vento

(de Outra Versão da Casa, edições Base, 1980 - este livro tem a seguinte dedicatória:
Aos que viram a terra tremer
e as suas casa desabar em 1-1-1980
e em especial
aos que continuam sem casas
ou em casas repartidas
)

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