14.11.03

EMANUEL JORGE BOTELHO

Nasceu em S. Miguel, Açores, em 1950.
Ilhéu (açoriano) por nascimento e por opção, E. J. B. É um dos grandes poetas a descobrir e a relembrar. Vive em Ponta Delgada. Os seus livros têm edições reduzidas, ora no continente, ora em pequenas plaquettes cuja produção artesanal assegura uma articulação quase secreta, muito restrita. Tão restrita que se torna injusta para um dos nomes a fixar na nossa literatura de hoje. (Francisco José Viegas - introdução de uma entrevista publicada na Ler nº 27 - Verão de 1994)


3.

...olho a minhas mãos
e só vejo sal.
na rota do SOL
interpõe-se uma vogal...

(de terra-mote ou a destruição dos búzios, 1980 - reproduzido em: Sempre disse tais coisas esperançado na vulcanologia - 12 poetas dos Açores, org. e notas de Emanuel Jorge Botelho)


é uma questão de linha comecemos
pelos postes
os fios sobre o nosso ombro carregam o peso
ó código dos campos lavrados em linha sob a fala
não se vê que barcos passam
no cobre a tua cara em linha cai
sobre o caldo que levas de madrugada no cesto à boca
em linha levas a colher enquanto
sobre ti se cruzam os pactos

(de MAS O TERRITÓRIO NÃO É O MAPA, 1981 - reproduzido em: Sempre disse tais coisas esperançado na vulcanologia - 12 poetas dos Açores, org. e notas de Emanuel Jorge Botelho)


2

dentro de cada palavra o cálice da luz, queria. sobre a mesa
os nomes olham a curvatura dos raios, os olhos
às vezes esta tinta a querer dar-se à noite
sobranceira ao líquido em que o sono se dilui. como era irmã
o coro das primeiras letras,
a tragédia babada o grito do hálito
das sílabas naquele caderno de duas linhas antes do susto destes dias tão novos? habitamos
aqui a fala que traz cada toalha ao desdobrar-se nada mais se pode
pedir à noite que um pouco de anil para a folha alva. tudo repousando
sempre
. o cálice como um foco e os olhos na mesa
posta de nomes servida

(de Cesuras, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1982)


esta pedra ainda fala. no rumor dos cheiros a boca súbita do momento em que o ferreiro move a mão para os cravos. dá notícia

(de SARDAS, &etc, 1984)

risco de asa. a mulher carda
a face de olhos rente aos pés. não
é preciso que o linho chegue de noite com uma faca nos dentes.
a arma branca plana certeira sobre a hora da cara pedir
uma ardósia para o voo das laranjas. vem descalça

(de BOOMERANG, frenesi, 1985)


vai-se diluindo o peso da mão, o que nela é água leve
para a explosão do gesto

a cara lambe os dedos, espera
um fio de lágrima, sobre a morte

(de ASAS E PENAS, &etc, 1988)


talvez te reste o pano com que o riso
trai a luz de bibe que há nos vidros

a crina do lume já domada
com um livro de horas na virilha

o coice é de oiro, como a morte
no perdão de fuligem que há na cal


*


para onde é que nós vamos quando a música não dói
cega de unhas
no urro dos pulsos

a faca de costas para o espanto da cigarra
e um grilo algemado
entre o lábio e a terra

eu queria dizer-te que o fim é quase mudo,
como a tília

(1992?-1995)

(de PERGUNTAS QUEIMADAS, edições Bumerangue, 1996 - colecção guarda-rios)


três pancadas depois
a cor pisa o branco
muda

e uma amora de agosto cai,
ferida, numa crina de passagem

há cinza guindada de uma mão que aplaude


*


resiste-se à morte
semeando heras,
tatuando, na subida,
os ombros de deus

(de A GIZ DE ALFAIATE, Black Sun editores, 2000)

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