[SONETOS À SEXTA-FEIRA - no aniversário do fim duma sequência]
JORGE DE SENA
GÉNESIS
I
Afirmo e esqueço a qual serenidade
em mim persiste como a guerra breve
ao longo de anos que nenhuma neve
abrandará na terra. E tanta idade
é mera circunstância de igualdade.
Infeliz neve que a si própria deve
o esforço de pousar, de não ser leve
um tempo antes do gelo. E se alguém há-de
vi corromper o Sol da primavera,
que esqueça logo o projectar da Esfera
- e, só depois, a Sombra essencial.
Da corrução como estro e como guerra
a brevidade alastrará na terra.
Afirmo e esqueço. Afirmo esqueço a qual...
2/2/43
II
Nenhum alta te resta que o não sejas
no breve tempo entre morrer e estar.
E quando não estiveres, como desejas,
não menos pedra o vente há-de encerrar
a perspicácia anónima. Não vejas!
Não queiras adorar nem comparar,
porque não estão suspensos nas igrejas
pálidos do tempo ou sombras do lugar.
Como esta aurora, purgação dourada,
ara serás da noite já entrada,
que, enquanto altiva, a noite é mais funesta.
Tudo não és. Basta que as flores nocturnas
se humilhem, uma a uma, sobre as urnas.
Não entres mais agora: esse te resta.
18/2/43
III
Quando, mais novo, noutro renasceres,
hás-de ser Deus à idade abandonada.
Nunca melhor, apenas melhorada
a forma ritual de envelheceres.
Quando, mais velho, então, noutro morreres,
nem o não-ser te voltará ao nada.
Avançam já mais anjos. Descuidada
caçam-te a essência. Atiram-na. E viveres,
hás-de viver quer queiras quer não queiras.
Debalde, vir-a-ser ali caído,
imploras, gritas. Se um grilhão se parte,
outro te fazem de épocas inteiras.
E, porque, uma vez, foste prometido,
debalde encarnarás: hão-de matar-te.
26/2/43
IV
Assassinais, ó anjos, vosso amor;
a carnívoros dais quem só vos ama.
E para quê? Se sempre outro Senhor
vos criará mais outros - quem chama
vossa alegria de asas com o ardor
de Quem ordena coortes sobre a lama!
Do grande Amante que maior favor
que da inserção da pena sobre a escama?
Nadais, ó anjos para quê da morte,
e não sabeis de vós nem quanto sabe,
ou dela, o que passar e não suporte
o sangue eterno que das fauces pinga.
Nesse, que existe porque em Deus não cabe,
é com terror que o Sangue nele se vinga.
10/3/43
V
Temor o tens de ti, meu Deus, eu não.
Temor do amor que possas vir a ter
e de um gesto que faças sem saber
a quem atinges ou proteges. São
bem teus ainda, quando ao coração
reduzem o dever de não morrer
como homens que te percam. Mesmo ver
que a quanto te amam temes... Nenhum pão
aceitam puro em que a vingança esplenda.
A Terra pesa tanto! E a densa venda,
se ao peso dela cai, mostra-os - e vejo-te,
e que não és sem ela nem com ela.
Mas para eles até a ausência é bela.
Não temas: eu abrigo-te e protejo-te.
17/3/43
VI
De mim não falo mais: não quero nada.
De Deus não falo: não tem outro abrigo.
Não falarei também do mundo antigo,
pois nasce e morre em cada madrugada.
Nem de existir, que é vida atraiçoada,
para sentir o tempo andar comigo;
nem de viver, que é liberdade errada,
e foge todo o Amor quando o persigo.
Por mais justiça... - Ai quantos que eram novos
em vão a esperaram porque nunca a viram!
E a eternidade... Ó transfusão dos povos!
Não há verdade: o mundo não a esconde.
Tudo se vê: só se não sabe aonde.
Mortais ou imortais, todos mentiram.
14/5/44
(de Coroa da Terra, 1946)
POEMS FROM THE PORTUGUESE
Há 2 horas
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