7.9.03

Andy Wahrol disse que um dia
todos teríamos quinze minutos
de fama.

Eu porém digo-vos:
Há de chegar o dia, e é já agora,
em que mesmo os mais famosos terão
cinco minutos de privacidade.
[gosto muito de inventários XVII]

ALEXANDRE O'NEILL

INVENTÁRIO


Um ruído de torneiras que pinga
Um gato passeado pelo desejo
Uma esposa coberta de caliça
Um despejo

Um congresso que dorme inaugurado
Uma condessa de sovaco triste
Um excremento muito mal logrado
Um mimo a que ninguém assiste

Um repelente menino Vicente
Posto na vida só p'ra ter juízo
Um incisivo e solitário dente
Carregado de riso

A miúda que vem maneirinha
Ao encontro na Praça do Chil'
E a voar como uma andorinha
Do meu coração o til

Uma d'óculos a olhar de lado e é p'ró pecado
Uma torpe saborosa canção
Um rápido encontro falhado
Um dia de bruços no chão

Um tinto vomitado na areia
Uma nuca rachada pelo sol
Um osso a esperar a maré-cheia
Uma petiza pendurada e mole

Um tartamudo na pior altura
Um soluço através duma ruína
Uma forte implacável dentadura
À dentada subindo pela ravina.


(de No Reino da Dinamarca, 1958)
[gosto muito de inventários XVI]

DANIEL FARIA

Um coração de sangue
Um coração de xisto e aço
Um coração angular e redondo
Como a pedra que te abre
Do interior do chão

Um coração solar
De granito
De carne
Curado da noite de nascença

Um coração de homem
Um coração de homem vivo
Um coração de criança ao colo
Interior
- Mais interior do que o sangue no coração que me darás -

Peço um coração
Nuclear

(de Explicação das árvores e de outros Animais, Fundação Manuel Leão, 1998)
[gosto muito de inventários XV]

PEDRO MEXIA

Memória Descritiva


A sombra dos tectos altos
não deixa respirar. A pintura
esboroada como os ossos.
A moldura verde das portas
na solidão de ferro abandonada.
As cortinas de fumo sujo.
Serradura nas frestas da madeira.
Gonzos, chaves, uma gaveta
com bocados de uma cama.
Luzes ímpares em jornais antigos.
Ganchos, fios, fendas.
Uma almofada, restos
dum romance francês, o metal
de um candeeiro. Recantos,
esquinas, manchas irregulares,
pratos, móveis trôpegos, uma parede
onde estala a cal. Tábuas pequenas,
traves, bolor num espelho, vidrinhos,
relógios, autocolantes, fechaduras,
uma arca da qual ninguém
se aproxima, pedaços de tecido
alegre e tantas cadeiras.

(de Em Memória, Gótica, 2000)
[gosto muito de inventários XIV]

JOSÉ MIGUEL SILVA

Reservas


A bicicleta azul roda 16
o relógio digital do melhor aniversário
os baralhos os pêssegos de julho
prolongando o S. João
o relato dos Domingos
o cachecol de campeão
a noite como um túnel de minutos
o primeiro candeeiro o velame
do livro inicial
o comboio para Irivo
o beliche em que dormiam
desejos e temores
as armas dos irmãos e o baloiço
ao fundo do quintal
os olhos de Celina
o filme que começa
o filão de amoras bravas
atrás de muros altos
a Zundapp do vizinho a morte conhecida
as sevícias do recreio
entre duas alianças
a corrida à mercearia
as areias de Francelos Valadares
as cartas para o pai
os gatos o fulgor dos pirilampos
o "ama-me" das fotos
no pátio das cerejas
os joelhos golpeados de verdete
os risos de papel
as moedas encontradas uma vez
e que logo foram cromos
que logo foram pó.

(de O Sino de Areia, Gilgamesh, 1999)
[gosto muito de inventários XIII]

VINDEIRINHO

f_

os fragmentos da inquietação, facas, copos de corpos de
iogurt vazios que se estão a deitar no caixote do

lixo
de vinho, de vidro, também

vazias, novos materiais, uma praia de mensagens nas
garrafas, sacos
do lixo, vem a

mulher a dias de negro, beatas de cigarros pautadas pelo ritmo
das
mesas e dos cinzeiros.

o frio da ausência de person
agens em espaços cansados cheios de sono. o sofá e a sala des
arrumada. quem

o fumo da substância alquímica, o oiro velhíssimo. a carne
deixada há uma semana
no tacho. frases inacabadas há qto tempo não nos víamos.
cocktail
molotof de convidados. vermelho, azul, amarelo, branco este o de
um silêncio frio e sanguinário de uma pedra de mármore
talhada

depois da morte da festa. uma borboleta que vinda da
janela entra pela casa a dentro

a manhã que tem dificuldade em se levantar na orquídea
do
vaso,
uma luz que entra pelas persianas desta igreja no centro da c
idade antiga
embriagada de talha doirada e de barcos afund

ando

fragmentos de deus e alimentos genéticos nos centros comerci
ais, fra
gmentos de deus na sala de
pois da

morte da festa na arquitectura do
espaço

(de DOMÉSTICOS, Black Sun editores, 2001 - the impossible papers)
[gosto muito de inventários XII]

ALEXANDRE O'NEILL

LISTA DE OBJECTOS ENCONTRADOS UM ACAMPAMENTO DE ESCRAVOS FUGITIVOS MAIS O POEMA ENCONTRADO NESTA LISTA


três machetes
três facas duas com ponta e outra sem ponta
três punhais de tamanho maior com as suas baínhas
um punhal sem cabo e sua baínha
três punhais sem cabo e sem baínhas
um machado para lenha com cabo
meia arroba de cera cozida pouco mais ou menos
meia arroba de cera cozida pouco mais ou menos
igual quantidade de cera em rama
um baralho de cartas
algumas peças de roupa
um capote com mais de meio uso
uma rede de dormir com mais de meio uso
um pouco de carne
uma frigideira e um pouco de comida
um garrote grande e uma pedra redonda
uma vasilha grande de guira para transportar água
uma cabaça pequena com mel e uma garrafa vazia
um pouco de pólvora
seis chuços que mandei destruir

(de Dezanove Poemas, 1983, in Poesias Completas 1951/1986, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1990)
[gosto muito de inventários XI]

JOSÉ MÁRIO SILVA

AINDA UM OUTRO POEMA DOS DONS

Tal como tu, Jorge Luis Borges,
graças quero dar ao insondável
labirinto dos efeitos e das causas,
pelo cosmos infinito, espaço
vazio onde brilham galáxias,
pela luz, que é ao mesmo tempo
onda, partícula e sete cores
através de um prisma,
pela vida, esse acaso fabuloso,
pela evolução das espécies, trama
subtil que une bactérias, leopardos,
acácias, fungos e homens,
pelas noites antigas em que as estrelas
pareciam grandes fogueiras acesas no céu,
por Atenas, em cujas ruas nasceu a
democracia e o pensamento,
por Eratóstenes, que calculou a dimensão
da Terra, medindo sombras,
pela inteligência, a mais eficaz de todas
as armas e também a mais traiçoeira,
por Heraclito, frente ao rio eterno
que nunca se repete,
pelo negro basalto e a brancura da neve,
pela beleza de um corpo nu,
pelo trigo, o alabastro e a cidra,
pelos gestos heróicos que mudam o
frágil rumo da História,
por Galileu,
de luneta apontada aos astros,
lendo a matemática com que se
escreve o livro do universo,
pela utopia, esse lugar impossível
mas absolutamente necessário,
por certa noite de 1993,
pela melancolia, doce forma de tristeza,
por tudo o que foi dito mas ficou por escrever,
pela torre de Babel, esse prodígio que Deus não permitiu,
pela música de Bach,
precisa, perene, perfeita como um cristal,
pelas madrugadas em Paris, à beira do Sena,
pelo amor, luminosa e indizível
união entre dois seres,
pelos albatrozes que pairam sobre falésias,
pelo Maditerrâneo, o vinho e o mel,
pela alegria de estar entre amigos
ouvindo Schubert e lendo poesia,
pelo cinema, lugar escuro onde o
mundo pode ser reinventado,
pelos poentes de Turner e os gelos de Friedrich,
por James Joyce, hábil construtor de
uma Dublin feita de palavras,
por Signac e a sua Auxerre pontilhista,
pelo génio de Alekhine,
sacrificando dama e torre num jogo às cegas,
pelo sonho de Marx, que acreditou num
homem novo e melhor,
pelo sabor dos alperces no verão,
por Hector Hug Munro, que escrevia com
elegância e era subtil como um gato persa,
pelos 4 minutos e 33 segundos
de John Cage,
pela liberdade, último reduto do indivíduo,
pelo Grand Canyon, que nos reduz
a quase nada,
pelas iluminuras medievais,
com anjos dentro das letras góticas,
pela paciência que esmorece com o
passar dos anos,
pelos jornais, o cheiro da tinta e
o estrépito das rotativas,
pela geometria de Riemann,
com que Einstein imaginou o espaço-tempo,
pela inocência das crianças e a imagem
serena de um bebé dormindo,
pela noite em que vi uma lua vermelha
sobre o Báltico,
pela escrita, caminho árduo mas exaltante,
pelo poema de que este é espelho,
por todos os dons que também calaste,
por ti, Borges, poeta cego como Milton e Homero,
minotauro perdido num labirinto de versos.

(de Nuvens & Labirintos, Gótica, 2001)

6.9.03

GIACOMO LEOPARDI

Nasceu em Recanati, em 1798.
Filho de uma família da alta nobreza, , recebeu uma riquíssima educação desde tenra idade, à custa, no entanto, de uma situação de dolorosa clausura, motivada pela austeridade e disciplina maternas. Rapidamente os seus mestres eclesiásticos são dispensados, pois Giacomo revela-se brilhante ao ponto de os superar. Antes dos 15 anos já dominava as principais línguas modernas - francês, inglês e espanhol - , as clássicas e ainda o árabe, o hebraico e o sânscrito.
Começou a compôr o essencial da sua obra por volta dos 20 anos e é considerado um dos mais importantes poetas italianos a par de Dante e Petrarca.
Morreu em Nápoles, em 1837.


A Si Mesmo

Repousa para sempre,
exausto coração. Morto é o engano extremo
que eu supusera eterno. É morto. E sinto
que em nós de enganos caros
a mais da esp?rança, o desejar é extinto.
Repousa. Já bastante
hás palpitado. Coisa alguma vale
o teu bater, nem de saudade é digna
a terra. Tédio amargo
a vida, e nada mais; a lama é o mundo.
Quieto, pois. Desespera
por uma última vez. À raça humana o fado
não deu mais que o morrer. Ora despreza
a natureza, o triste
brutal poder que contra nós impera,
e o infinito vácuo do que existe.

(Tradução de Jorge de Sena, in Poesia de 26 séculos, 3ª ed: edições Asa, 2001)


Scherzo

Um menino inda eu era,
Com as Musas entrei em disciplina;
Uma delas pegou na minha mão,
E em todo aquele dia
Assim me conduzia
Em visita à oficina.
Mostrou-me parte a parte,
As ferramentas da arte
E os serviços diversos
P'ra que cada, a rigor,
Se emprega no lavor
Das prosas e dos versos.
Eu olhava e inquiria:
«Musa, a lima onde está?» E eis me dizia:
«Gastou-se, a lima; agora, andem sem ela.»
E eu: «Mas de a arranjar
Não cuidais - ajuntei - quando está cega?»
Volveu-me: «Sim; mas tempo - esse, não chega.»

(tradução de Pedro da Silveira, in Mesa de Amigos, Direcção Regional dos Assuntos Culturas dos Açores, 1986 - há uma reedição recente, revista aumentada, da Assírio & Alvim)


À Lua

Lembro-me, ó graciosa lua,
Que há um ano, sobre esta colina,
Cheio de angústia, eu vinha contemplar-te:
E tu pendias então sobre a floresta
Como fazes agora, iluminando-a por completo.
Mas velado e trémulo do pranto
Que me assomava aos olhos o teu rosto
Me parecia, que laboriosa
Era a minha vida: e ainda o é, nem muda de feição,
Ó minha amada lua. E todavia faz-me bem
Esta lembrança e o contar a idade
Da minha dor. Oh!, como é doce,
No tempo da juventude, quando ainda longo
É o curso da esperança, breve o da memória,
A lembrança das passadas coisas,
Embora triste e embora as fadigas durem!

(de Cantos, apresentação, selecção, notas e tradução de Albano Martins, prefácio de João Bigotte Chorão e acompanhado de uma pintura de Armando Alves, Vega, s/d)


O Infinito

Sempre gratas me foram esta colina tão só
E esta sebe alta e extensa
Que não deixa ver o último horizonte.
Mas quando me demoro a contemplá-la
O meu espírito gera para além dela
Intermináveis espaços, silêncios sobre-humanos
Uma paz escura, profunda; e pouco falta
Para o terror me assaltar o coração. E quando
Ouço o vento sussurrar nas plantas
Comparo o infinito de tanto silêncio
A esta voz, e lembro-me da eternidade
Das estações mortas, do tempo presente
E vivo, do seu murmúrio brando. Assim
Se aniquila o meu espírito na imensidão:
E é-me grato naufragar neste mar.

(tradução de Ernesto Sampaio, in Rosa do Mundo, Assírio & Alvim, 2001)

4.9.03

PLUTARCO

Nasceu no ano 45, em Queroneia, perto de Tebas.
Foi aluno da Academia de Atenas e fez várias viagens pela Ásia, pelo Egipto e pela península itálica. Exerceu funções cívicas e religiosas de relevância e tinha direito de cidadania em Atenas, Delfos e Roma, além da sua cidade natal.
A tradição atribui-lhe cerca de 200 obras, tendo chegado aos nossos dias cerca de 120, entre biografias e outros escritos diversos.
Morreu por volta de 125, tendo-lhe sido feitas numerosas homenagens póstumas.



A princípio [Sólon] dedicou-se à poesia por divertimento, para deleitar os seus ócios, sem nunca tratar assuntos sérios. Mais tarde, pôs em verso máximas filosóficas e introduziu, nos poemas, diversas coisas relativas à sua administração política, não para as historiar e conservar delas recordação, mas para fazer a apologia da sua conduta. Fazia também neles exortações, dava conselhos aos atenienses e algumas vezes até lhes dirigia ásperas censuras. Diz-se ainda que tentou pôr as suas leis em verso e cita-se o começo:

Possam, pelo favor do deus supremo,
Estas leis gozar sempre o melhor êxito!


A exemplo dos sábios do seu tempo, cultivou principalmente a parte da moral que trata da política. Em física apenas tinha conhecimentos muito superficiais, como se vê por estes versos:

A neve fecundante e o granizo homicida
Formam-se nas nuvens, e o raio fulminante
Brota do relâmpago: os ventos impetuosos
Agitam nos oceanos as revoltas ondas;
Se não fosse o brinquedo dum sopro terrível,
O mar dos elementos seria mais calmo.


Em geral, foi Tales, de todos os sábios, o único que levou a teoria das ciências além das coisas habituais; todos os outros deveram a sua reputação de sabedoria apenas aos seus conhecimentos políticos.

(de Sólon, Legislador de Atenas, tradução de Lobo Vilela, editorial Inquérito, 1938)
[Sólon foi aristocrata, poeta e estadista ateniense, viveu nos séculos VII e VI a. C., possivelmente entre 640 e 558. Segundo a tradição, foi um dos Sete Sábios da Grécia, tendo feito grandes viagens e exercido diversos cargos cívicos]

3.9.03

por falar em espanhóis, aqui vai um blog jeitoso: Uno que pasaba
FRANCISCO BRINES

Nasceu em Oliva, Valência, em 1932.
Poeta e ensaísta, licenciado em Direito e com estudos em Letras e Filosofia, foi leitor de espanhol em Oxford durante dois anos.
Em Portugal forma publicados dois livros de poesia sua: Ensaio de uma Despedida, Antologia (1960-1986), em 1987 e A Última Costa, em 1997 - ambos pela Assírio & Alvim e com tradução de José Bento. Está também representado na Antologia da Poesia Espanhola Contemporânea, do mesmo tradutor e da mesma editora.


Habrá que cerrar la boca
y el corazón olvidarlo.
Dejarlo sin luz, sin aire,
como un hombre encarcelado,
y habrá que callarlo todo
lo que nos pueda hacer daño.
Cuando se caigan los muros
tendrá su rostro afilado,
y una dureza de piedra
encadenándole el canto.
Si respira dolerá,
dolerá tocar sus manos
eternas y solitarias,
y nadie podrá abrazarlo.
Que habrá quedado seco
como un árbol por el rayo,
que será una cordillera
de espinos, de pinchos bravos,
y no habrá una sola fuente
que corra por su barranco.
Su corazón será un cráter
apagado, que sin llanto,
que sin llanto.


(de Las Brasas, 1960 - incluído em Poesia Completa (1960-1997), Tusquets editores, 2ª ed: 1999)


A boca será fechada
e o coração esquecido.
Deixado sem luz, sem ar,
como alguém encarcerado,
e será calado tudo
o que nos possa causar dano.
Quando caírem os muros
terá seu rosto afilado,
e uma dureza de pedra
encadeando-lhe o canto.
Se respirar vai doer
vai doer tocar-lhe as mãos
eternas e solitárias,
sem que alguém possa abraçá-lo.
Pois terá ficado seco
como árvore por raio,
pois será uma cordilheira
de espinhos, de picos bravos,
e nem sequer uma fonte
irá correr em barranco.
Seu coração será cratera
apagada, pois sem pranto,
pois sem pranto.

[tradução minha]

2.9.03

[dois poemas de amor (!!) a propósito do que se diz hoje no RAE]

RÁDIO MACAU

logo se vê
(letra de Vitinha)

Piscar de olho
ao Alexandre O'Neill
"o amor é o amor e depois!".
O resto porém não tem nada
a ver, ele que me desculpe
de lá onde estiver.


O amor é o amor. E então??
Deixa-o ser o que é,
ou então deixa-o da mão.
E o resto logo se vê,
mais logo.
Pouca fé. É a fé que temos.
E então?
Deixa-a ser o que é, ou então
deixa-a da mão.
E o resto logo se vê,
mais logo.
Almas gémeas não conheço.
Sei é de almas siamesas,
que de ser tão iguais são
só meias e presas.
E então faço uma cedência
ao cansaço. E então passo.
Mais logo se vê.
Deixa ser o amor como ele for.
deixa ser a fé como ela é.
Mais logo se vê.

(do álbum A Marca Amarela, BMG, 1992 - creio que só existe ainda em vinil)



ALEXANDRE O'NEILL

O amor é o amor - e depois?!
Vamos ficar os dois
a imaginar, a imaginar?...

O meu peito contra o teu peito,
cortando o mar, cortando o ar.
Num leito
há todo o espaço para amar!

Na nossa carne estamos
sem destino, sem medo, sem pudor,
e trocamos - somos um? Somos dois? -
espírito e calor!

O amor é o amor - e depois?!

(de Abandono Vigiado, 1960)
A GRANDE REPORTAGEM

Comecei a comprar a GR no número 10, que trazia na capa uma fotografia de guerrilheiros timorenses e no interior um belíssimo texto do director de então, Miguel Sousa Tavares, sobre Ruy Cinatti.
A partir daí, todos os meses repeti o gesto de pegar na GR num qualquer quiosque e começar a folhear antes ainda de pagar. Não sei bem porquê, mas nunca "consegui" tornar-me assinante (tenho 5 impressos preenchidos para esse efeito, que nunca cheguei a enviar!) - acho que foi por receio de certos carteiros...

Entretanto fui comprando os números em atraso, faltando-me sempre o "mítico" nº 1 (da 2ª série). Procurava-o por alfarrabistas e geralmente encontrava-o... a preços assustadores - cheguei a ouvir o preço de 7.500$00!!! Até que um dia, numa venda de coisas velhas o comprei por... 150$00.

Não acredito que qualquer outra publicação destinada a um público genérico consiga gerar um tão grande grau de afectividade como a GR.
Coerência e variedade das matérias; opiniões fundadas; entrevistas a pessoas que sabem, de facto, das coisas e que têm, de facto, coisas para dizer; debate abrangente, sem chegar à confusão; denúncia de (pequenas e grandes) situações de injustiça e/ou aberrantes, sem alarmismos, mas com firmeza e tenacidade; qualidade das imagens e do grafismo; qualidade da impressão; escrita cuidada, geralmente elegante e, sobretudo, inteligível - são alguns dos elementos que tornam a GR indispensável nas minhas leituras do mundo e admirador de quantos a têm feito.

Posso, como leitor, subscrever o que diz o director "nunca fomos pessimistas, embora muitas vezes a desilusão aparecesse em muitos parágrafos".

A GR vai mudar de formato e de periodicidade e vai perder a autonomia na distribuição. Vou sentir saudades, mesmo sabendo que a qualidade se vai manter.

Vão continuar, naquele canto do quarto, os exemplares cuidadosamente empilhados, para continuar a reler.

Até breve, GR!